Descobri o motivo pelo qual é referida Benfica na cantiga de roda "que linda falua"!
"A Câmara Municipal de Belém foi criada pelo decreto do Ministério dos Negócios do Reino de 11 de Setembro de 1852. Este novo município sucedia à freguesia de Santa Maria de Belém, criada em 1833, que sucedia, por sua vez, ao Bairro Administrativo de Belém, instituído em 1813. A Câmara Municipal de Belém era composta pelas Freguesias de S. Pedro de Alcântara, Nossa Senhora do Amparo de Benfica, S. Lourenço de Carnide, Menino Jesus de Odivelas, Santa Isabel e S. Sebastião da Pedreira extra-muros. O seu primeiro autarca foi Alexandre Herculano." in arquivo municipal de lisboa
Chafariz do largo do Malvar (S. Lourenço de Carnide) com a inscrição Câmara Municipal de Belém, 1857
Por isso me recordo de cantar no externato da Estrada de Alferragide e na escola do Bairro de Santa Cruz, em Benfica: ”que linda falua que lá vem, é uma falua que vem de Belém; que vem de Belém que vem de Benfica é uma falua que lá vem lá fica; vou pedir ao senhor barqueiro que me deixe passar, tenho filhos pequeninos não os posso sustentar/ passará passará mas algum ficará, se não for a mãe da frente é o filho lá de trás”
Chafariz do largo do Malvar (S. Lourenço de Carnide)
nos degraus de laura
terça-feira, abril 03, 2018
domingo, fevereiro 26, 2017
Lisboa cor de rosa e cinza
Nasci em Junho de 1956 na Estrada de A-da-Maia, em Benfica. Em Agosto de 58 mudámo-nos para o Bairro de Santa Cruz. Eu tinha dois anos, a minha irmã 9 meses e o meu irmão viria a nascer em 1960 nessa casa cor de rosa - o 17 da rua 8.
Lisboa foi para mim, durante muitos anos, aquele Bairro de famílias com filhos, pequena aldeia abrigada e segura, a nossa ilha. E a Mata, manchazinha de sombras ali mesmo ao pé de casa... Lisboa eram os jogos da cabra-cega, do elástico e da macaca, as ameixas, os limões e os alperces, os miúdos à chinchada pela calada da noite e o meu pai a espantá-los como pardais, o homem do pitrolino com o seu cavalo e carroça de traquitanas, belo cigano de chapéu de aba larga ai Jesus das criadas (naquele tempo havia criadas, raparigas que moravam connosco como família), o velhote dos gelados no triciclo motorizado há frutas ou chocolate, cone de bolacha normal ou especial e chocmint!, o senhor Vitorino com as hortaliças e sempre uma cenoura para oferecer ao “amigalhaço”, o menino lá da casa, jogos de futebol de portão a portão muda aos 5 acaba aos 10 (e o menino brilhava), limpa-chaminés enfarruscados, grandes cordas e escadotes como na Mary Poppins, uma mulher robusta vendia o peixe à porta da cozinha, canasta pesada e grandes saias compridas, o homem do leite, o jarro maior e medidas de quarto, de meio, de litro, e os pregões!! “Há praí traaapos, jornaais e garraafas para vendeer?”, “Há figuiinhos maduriinhos! Quem quer fiiigos quem quer almoçaaar?!”, o “Amoladooore!” de flauta de pã, dizia a minha mãe que o amolador anunciava a chuva, e nós “um dó li tá cara de amendoá um secreto coloreto um dó li tá quem está livre livre está!” e “um aviãozinho militar atirou uma bomba ao ar a que terra foi parar?”, e “que linda falua que lá vem lá vem/ é uma falua que vem de Belém/ que vem de Belém que vem de Benfica/ é uma falua que lá vem cá fica./ vou pedir ao senhor barqueiro que me deixe passar/tenho filhos pequeninos não os posso sustentar...” Às vezes rebanhos de ovelhas passavam lá no Bairro. Havia quintas. Na Estrada de Benfica havia eléctricos de duas carruagens e autocarros verdes, de dois andares, com entrada atrás. Eu lá em cima a espreitar por cima dos muros das quintas da Estrada de Benfica...
2007
as cabras do mar
os gritos das gaivotas
as cabras do mar
contrastam com o piar aflito dos pequenos franganitos
empilhados em caixotes
uns em cima dos outros
numa paragem inesperada a caminho do matadouro
(o condutor teve que parar o camião para se refrescar, estava tanto calor... )
nunca mais me esquecerei dos milhões de escravos
as cabras do mar voam em pequenos bandos e gritam
oh como são livres e felizes, as cabras do mar!
figueira da foz, 14 de julho 2012
as cabras do mar
contrastam com o piar aflito dos pequenos franganitos
empilhados em caixotes
uns em cima dos outros
numa paragem inesperada a caminho do matadouro
(o condutor teve que parar o camião para se refrescar, estava tanto calor... )
nunca mais me esquecerei dos milhões de escravos
as cabras do mar voam em pequenos bandos e gritam
oh como são livres e felizes, as cabras do mar!
figueira da foz, 14 de julho 2012
quinta-feira, fevereiro 25, 2016
A Conspiração Solar do Padre Himalaya – Esboço biográfico dum português pioneiro da Ecologia”
“O enigma de M.A.G. Himalaya foi o facto de se ter preocupado com a energia solar e ser simultaneamente inventor de explosivos, padre e ter vivido, muitas vezes, quase à margem da Igreja, sem nunca ter abandonado as suas convicções espirituais; ter lidado com monárquicos, republicanos e anarquistas, sem contudo se ligar pessoalmente a nenhum movimento; ter viajado por longas paragens, sem sabermos as relações institucionais que estabeleceu; ter recebido glória e fama e ao mesmo tempo abandono e desprezo. O Padre Himalaya é um personagem que incomoda e fascina. É um enigma e um mito. A sua biografia, desconcertante, é cheia de complexidade, de claros-escuros difíceis de deslindar. Acrescente-se a tudo isto uma mitologia que se gerou à volta da sua singular personalidade”.
Jacinto Rodrigues
segunda-feira, junho 15, 2015
CÂNTICO DAS CRIATURAS , de S. Francisco de Assis
Altíssimo, Omnipotente, Bom Senhor
Teus são o Louvor, a Glória, a Honra e toda a Bênção.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as Tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol, que clareia o dia e que, com a sua luz, nos ilumina.
Ele é belo e radiante, com grande esplendor; de Ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que no céu formaste, claras. preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor. pelo irmão vento, pelo ar e pelas nuvens, pelo sereno e por todo o tempo em que dás sustento às Tuas criaturas.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, útil e humilde, preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, com o qual iluminas a noite. Ele é belo e alegre, vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, produz frutos diversos, flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam pelo Teu amor e suportam as enfermidades e tribulações.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar.
Louvai todos e bendizei o meu Senhor!
Dai-Lhe graças e servi-O com grande humildade!
Teus são o Louvor, a Glória, a Honra e toda a Bênção.
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as Tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol, que clareia o dia e que, com a sua luz, nos ilumina.
Ele é belo e radiante, com grande esplendor; de Ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e pelas estrelas, que no céu formaste, claras. preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor. pelo irmão vento, pelo ar e pelas nuvens, pelo sereno e por todo o tempo em que dás sustento às Tuas criaturas.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, útil e humilde, preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, com o qual iluminas a noite. Ele é belo e alegre, vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, produz frutos diversos, flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que perdoam pelo Teu amor e suportam as enfermidades e tribulações.
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, da qual homem algum pode escapar.
Louvai todos e bendizei o meu Senhor!
Dai-Lhe graças e servi-O com grande humildade!
segunda-feira, junho 08, 2015
Fragmentos de um roteiro de Lisboa
ARRABALDES DE LISBOA in Archivo pittoresco, TOMO VI 1863
Como todas as grandes capitaes, Lisboa, desde que rompeu seu primeiro cinto de muralhas, tem ido absorvendo em si as povoações visinhas. Assim vemos hoje no coração da cidade os sitios onde outrora avultavam villa Quente, Valverde, villa Gallega, villa nova de Andrade e outras mais. N'esse tempo, os terrenos que constituem actualmente os seu suburbios, apenas contavam de longe em longe alguns logarejos e varias quintas. A importancia, povoação, e aformoseamentos dos arrabaldes de Lisboa datam do terremoto de 1755. Depois d'esta catastrophe, muitas familias da cidade ahi se foram estabelecer, umas levadas do terror, não querendo mais habitar no seio de grandes povoações; outras guiadas pela necessidade de se acolherem ás suas fazendas, como unica taboa de salvação depois do naufragio de suas fortunas. Desta epocha por diante começou a edificação em grande escala. Aquelles logarejos, pela maior parte, foram-se ligando uns aos outros; e em breve se uniram á propria capital por uma longa fileira de palacios, casas e jardins, que pouco a pouco foram guarnecendo as estradas por onde se communicava com as visinhas aldeias.
ARRABALDES DO NORTE
Bemfica, Calhariz, Porcalhota, Bellas e Queluz
Saindo pelas barreiras de S. Sebastião da Pedreira, estrada de Bemfica, a uns tres kilometros da praça do Commercio, e em linha recta com a mesma, chega-se aos mais lindos suburbios de Lisboa, situados no ameno e extensissimo valle que vae correndo para o norte em direcção á serra de Cintra. *
Logo ao sair das barreiras está a
QUINTA DE PALHAVÃ.
— Esta propriedade, ainda não ha muitos annos, era celebre pela espessura de seus bosques, pela grandeza dos jardins e preciosa collecção das suas plantas, pela abundancia de estatuas e vasos de marmore que a decoravam, dentre as quaes algumas sobresaiam por excellencia darte, e finalmente pela bondade e frescura de suas aguas. Esta quinta e palacio foram fundados na segunda metade do seculo xvii por D. Luiz Lobo da Silveira, segundo conde de Sarzedas. Seu filho, D. Rodrigo da Silveira, terceiro conde do mesmo titulo, fez-lhe muitos augmentos, entre outros o grande portão da entrada principal, oude avultam as armas desta antiga e illustre familia, que vindo a extinguir-se no seculo passado, reverteram os seus bens para os condes da Ericeira, creados posteriormente marquezes de Louriçal; e pela extincção desta casa succederam nos seus morgados os srs. condes de Lumiares.
No palacio de Palhavã morreu em 7 de dezembro de 1663 a rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya, filha do duque de Nemours, e mulher delrei D. Pedro n, tendo ido para alli convalescer. Serviu tambem aquelle palacio de residencia aos principes D. Antonio, D. Gaspar, e D. José, filhos naturaes mas reconhecidos del-rei D. João v, (o segundo veiu a ser arcebispo de Braga, e o terceiro inquisidor geral de Lisboa), aos quaes o povo appellidava meninos de Palhavã, epitheto que lhes conservou ainda mesmo na velhice.
Durante a longa residencia d'estes principes em Palhavã chegou a quinta ao seu maior esplendor, e mais esmerada cultura. Adornavam-se os seus jardins com a mais rica e bella collecção de plantas exoticas que então havia na capital. Depois da morte dos principes começou a decadencia da quinta, que augmentou posteriormente à invasão franceza de 1808. Porém a grande ruina d'esta propriedade foi causada pelas luctas durante o cerco de Lisboa de 1833, na guerra da restauração da liberdade. Foi theatro de um mortifero combate na tarde e noite de 5 de setembro daquelle anno. Palacio e quinta tudo foi assolado. Desde então progrediu a devastação até ao ponto de reduzirem a terras de trigo os seus bosques, pomares, e jardins. Passado tempo alguns dos seus vasos e as figuras de marmore mais pequenas vieram ornar a varanda do jardim que se prolonga com o palacio do sr. conde de Lumiares, ao Passeio Publico. Porém ainda lá se conservam algumas estatuas colossaes, erguendo-se em meio de cearas, e lagos ornados de figuras, tudo feito em Italia, havendo entre estas obras de arte algumas produceões do celebre esculptor Bernini. Felizmente esta propriedade foi comprada ha pouco pelos srs. condes de Azambuja, que se propõem a restaurar o palacio e quinta, conservando ao primeiro todas as suas feições primitivas.
Continuando pela mesma estrada encontra-se pouco adiante um edificio arruinado, dividindo os dois caminhos que levam a Bemfíca e ao Pinheiro. Era um palacio dos duques de Cadaval, onde se celebraram as pomposas festas do casamento do terceiro duque daquelle titulo, D. Jaime de Mello, com a princeza D. Luiza, filha bastarda e reconhecida del-rei D. Pedro II. 0 terremoto de 1755 destruiu quasi completamente o palacio e a quinta annexa, não offerecendo hoje coisa que interesse aos curiosos, senão esta recordação historica.
Proseguindo chega-se ao sitio de Sete-Rios, donde partem para a direita a estrada das Larangeiras e para a esquerda a de Campolide. Este nome estendia-se até ao largo do Rato em tempos del-rei D. Fernando em que teve começo, derivando-se dos combates que alli houve por occasião do cerco de Lisboa pelas tropas de Castella. Chamava-se então Campo da Lide. Continuando a seguir a estrada de Sete-Rios para Bemfica avulta do lado direito a QUINTA DAS LARANGEIRAS.
— Foi fundada esta magnifica propriedade na segunda metade do seculo passado pelo primeiro barão de Quintella, pae do sr. conde do Farrobo. O risco do palacio e planta da quinta e jardins foram feitos pelo padre Bartholomeu Quintella, da congregação do oratorio, e tio do fundador. Porém as obras mais grandiosas d'esta quinta e seus principaes aformoseamentos, é tudo devido ao actual proprietario o sr. Joaquim Pedro Quintella, primeiro conde do Farrobo. No palacio, cujas salas são decoradas com gosto e magnificencia, existe uma boa collecção de quadros, de auctores nacionaes e estrangeiros, e outros objectos de arte. O theatro contiguo, incendiado ha pouco, era de muita elegancia e riqueza, da mesma sorte que o grande salão de baile e mais camarins que o cercam. Procede-se actualmente á reedificação. Na quinta ha diversos jardins, mui lindas estufas, um labyrintho, lagos de differentes feitios e grandeza, diversos jogos, um amphitheatro de animaes ferozes, um viveiro de aves de recreio, uma casa ou chalet suisso no meio de uma mattasinha, varias estatuas, bustos, e vasos de marmore, e mirantes, e casas de regalo de invenções variadissimas.
' Náo juntámos n esta noticia uma vista d'este palacio porque o estado das obras, que n'elle so fazem ao presente, obstam a que se possa tirar um desenho com perfeição. Dal-a-hemos logo que seja possível.
A quinta das Larangeiras está situada entre as estradas de Bemfica e das Larangeiras, a cinco kilometros de distancia da Praça do Commercio. O palacio e o theatro deitam para a segunda estrada, que vae á-Luz, Telheiras, Carnide, etc. Sobre a primeira abremse magnificos porticos de gradaria de ferro, ornados com figuras de marmore, e com dois esbeltos pavilhões, com suas columnas e estatuas tambem de marmore. Dão entrada para uma rua magestosa, mui larga e comprida, orlada de arvoredo tapetada de relva perennemente viçosa, com um formoso lago, e um elevado obelisco de marmore branco e côr de rosa. Remata esta rua nos jardins do palacio, ficando este em perfeita correspondencia com os referidos porticos e pavilhões.
A nossa gravura representa a metade desta rua para o lado da estrada de Bemfica.
Quasi em frente dos porticos e pavilhões da quinta das Larangeiras vem desembocar um caminho estreito, que conduz á alameda de S. Domingos de Bemfica por entre as quintas de sua alteza a sra. infanta D. Isabel Maria, e do sr. marquez de Fronteira.
A ALAMEDA DE S. DOMINGOS DE BEMFICA é pequena, mas agradavel, porque a povôam arvores copadas e annosas, e porque a guarnecem, por um lado o palacio e jardim d'aquelle fidalgo, e por outro os arvoredos da quinta de sua alteza, que fazem sombra a uma fonte publica, e á entrada principal do seu palacio, e em seguida a egreja e extincto convento dos dominicos. É celebre este logar das cercanias de Lisboa pela feira de arraial que ahi se faz durante o mez de maio, com grande concurrencia de povo aos domingos.
Deu origem a esta feira o seguinte caso. Pouco tempo depois del-rei D. João I ter feito doação dos seus paços de Bemfica á ordem de S. Domingos, encarregou este soberano um commerciante, que ia partir para Allemanha, de lhe mandar fazer n'esse paiz uma imagem de S. Domingos esculpida em madeira, para a offerecer á egreja do novo.convento. Partiu o mercador, e na volta, vindo por mar, levantou-se tão rijo temporal, que se julgou perdido o navio. No meio da consternação geral lembrou-se o mercador de recorrer á intercessão do patriarcha da ordem dominicana. Traz para a tolda a santa imagem: mostra-a aos marinheiros, e todos oram com devoção. D'ahi a pouco bonançou o mar, e em breve surgiu o navio a salvamento no porto de Lisboa. Correu logo a noticia do acontecimento por toda a cidade, que se despovoou para ver e acompanhar a imagem em procissão, desde o logar do desembarque até ao convento de S. Domingos de Bemfica. Por muitos dias consecutivos concorreu alli immensa multidão de fieis. Como o caso succedeu em um domingo de maio, nos annos seguintes foram consagrados todos os domingos d'esse mez a festejar o santo, e commemorar o milagre.
O CONVENTO DE S. DOMINGOS. — Pertenceu á ordem dos prégadores, foi fundado por el-rei D. João i, a instancias do seu privado e chanceller-mór João das Regras.
Correndo o anno de 1399 doou aquelle soberano para o dito fim os paços de Bemfica com a quinta annexa, que desde o reinado de D. Diniz serviam de casa de campo aos nossos monarchas. N'aquelle mesmo anno se estabeleceram os frades dominicos nestes paços, e com o auxilio regio construiram uma egreja de modesta fabrica e mui limitadas proporções.
Fizeram-se pelo decurso do tempo muitas obras de reconstrucção e acrescentamento no tenyjlo e no convento; porém nos principios do seculo XVII todo o edificio ameaçava ruina. Procedeu-se então a uma reedificação quasi geral por diligencias de fr. João de Vasconcellos, prior que era d'este convento. No dia 29 de junho de 1624 lançou este prelado a primeira pedra nos alicerces da nova egreja. Claustro, casa de capitulo, refeitorio e dormitorio, foram tambem feitos de novo. Do primeiro edificio só ficou a sacristia e o côro. O terremoto de 1755 lançou por terra a egreja e convento, que logo depois foram reedificados.
Pelos annos de 1818 ateou-sc no convento um violento incendio, que esteve quasi a ponto de reduzir tudo a cinzas. Na livraria, que ardeu completamente, perderam-se muitos livros raros, e manuscriptos de bastante apreço.
Pela extincção das ordens religiosas ficou por muito tempo sem culto a egreja, e o convento condemnado u uma ruina certa. A ambos valeu a solicitude de sua alteza, a sra. infanta D. Isabel Maria, restituindo o culto ao templo, e comprando o convento, que desde então tem servido de abrigo á pobreza, e tambem serviu de asilo e casa de educação á infancia.
li memoravel este convento nos annaes de Portugal por quatro grandes vultos bistoricos, que o illustraram na vida com o brilho de eminentes virtudes, e de subido engenho, ou que o honraram na morte com o precioso deposito de suas venerandas cinzas.
São esses quatro vultos D. fr. Bartholomeu dos Martyres, fr. Luiz de Sousa, D. João de Castro, e João das Regras.
O primeiro, decorado com a mitra primacial de Braga, e que tão nobre e sabiamente sustentou no concilio tridentino os interesses e dignidade da religião e da patria, foi conventual deste mosteiro.
O segundo, que na vida secular assombrou os inimigos da nossa independência com um acto de heroico patriotismo, e que no claustro edificou a todos como exemplar das virtudes christãs, eternisando ao mesmo tempo o seu nome como um dos nossos escriptores mais elegantes, mais correctos e melifluos, viveu, morreu, e jaz nesta casa religiosa.
O terceiro, ao cabo de uma existencia gloriosa e honradissima, alli foi repousar o corpo, vasio d'aquella alma immensamente grande, que encheu toda a Asia com a fama das suas acções, e com o respeito e prestigio do nome portuguez.
O quarto, finalmente, o eloquente orador, que decidiu as cortes de Coimbra de 1385 a cingir a fronte do mestre de Aviz com a coroa que o direito da legitimidade dava aos filhos de D. Pedro I e da desventurada Ignez de Castro, então presos em Castella pelo rei desse paiz que pretendia assenhorear-se do throno de seu fallecido sogro, el-rei D. Fernando de Portugal; João d' Aregas, ou das Regras, o mais celebre jurisconsulto portuguez do seculo xv, tambem alli descança.
A egreja perdeu na ultima reedificação quasi todos os vestigios de antiguidade, sem adquirir coisa alguma que a recommende como monumento artistico.
O mausoleo de João das Regras levantava-se antigamente no meio da egreja; mas quando esta se reconstruiu no seculo xvii foi mudado para junto da porta do templo, á direita de quem nelle entra. É de marmore branco, e assenta sobre quatro leões.
A caixa tem por unico adorno oito escudos, representando todos o brasão de armas do chanceller de D. João i, cuja figura em alto relevo está deitada sobre a tampa. A estatua tem vestes talares: na cabeça o barrete doutoral, e ao lado o estoque, insignia de cavalleiro. Aos pés está um cão, emblema da fidelidade, posto como em guarda e vigia. Em volta da tampa lé-se em caracteres gothicos o seguinte lettreiro: Aqui jaz João das Regras Cavaleiro Doutor em Leys, privado tíelRei D. João fundador deste mosteiro, finou tres dias do mez de Maio era de 1442 (corresponde ao anno do nascimento de Christo de 1404).
João das Regras, largamente recompensado em honras e bens pelo mestre de Aviz, foi progenitor dos condes de Monsanto, depois marquezes de Cascaes, cuja familia se extinguiu no seculo passado.
A cerca do convento foi vendida pelo estado: é hoje propriedade particular. Não merecia que se fallasse n'ella, se fr. Luiz de Sousa a não celebrara na sua historia de S. Domingos, descrevendo-a com tão vivas e finas côres, que mais parece obra de pincel que de penna. A fonte do Satyro, que elle engranece e exalta; a outra fonte de que tanto gostava o cardeal rei pela frialdade das aguas; os párreiraes, em que, no dizer d'elle—fazem toucas as voltas, e frescura das parras; colaqres de pedraria as uvas, segundo o tempo e as cores dellas, já topazios, já rubis, primeiro esmeraldas — tudo isto ainda lá está, mais ou menos bem conservado. O quadro porém ostenta-se tão humilde e mesquinho a quem o contempla ao natural, quão bello e grandioso a quem o lê na chronica dominicana. Mas não falta n'esta a verdade; naquelle é que falta essa imaginação fecunda, que por meio das pompas do estilo, e das galas da poesia, derramava em tudo quanto tocava nova graça, mais fulgor e formosura.
Voltando a estrada de Bemfica, logo acima da quinta das Larangeiras, mas do lado opposto, está a
EGREJA DO EXTINCTO CONVENTO DE SANTO ANTONIO DA CONVALECENÇA, que pertenceu aos religiosos capuchos da provincia de Santo Antonio. Teve principio em 1640 como casa de saude dos ditos frades, a qual chamavam Convalecença, nome que depois se acrescentou ao do convento, e que tambem se ficou alternando com o do sitio, que é o da Cruz da Pedra. O convento e egreja foram reedificados e augmentados em 1746. Pela extincção das ordens religiosas foi vendido o primeiro a João Gomes da Costa, que o transformou em uma casa nobre para sua residencia no verão, e da cerca fez uma bonita quinta, mais de regalo que de rendimento. Hoje é de seus herdeiros.
A egreja está bem conservada, e no exercicio do culto. O seu lindo cruzeiro de variados lavores vé-se ao presente dentro da quinta das Larangeiras, e proximo das grades quasi fronteiras ao templo. Fez acquisição d'elle o sr. conde do Farrobo durante o tempo em que a egreja, em seguida á suppressão do convento, esteve fechada, e como em abandono.
Proseguindo pela estrada, pouco mais adiante d'aquella egreja, e desse mesmo lado, encontra-se a
QUINTA DE ANTONIO LODI. — É uma vivenda pequena mas linda, composta de excellente casa, curiosamente ornada; de jardins e bosque com uma grande lagôa, e muita variedade de objectos darte e construcções pittorescas, como estatuas, bustos, um museu, tanques, mirantes, casas de fresco, de banho, e de jogos, e uma ermida construida á maneira de uma cathedral gothica. Do segundo andar do mirante, que se ergue no fundo da quinta, sobre um grande lago, goza-se a vista de uma formosissima paizagem. Formam o centro do quadro as quintas e palacios da serenissima senhora infanta D. Isabel Maria, dos srs. marquezes de Fronteira, e do sr. Welhouse, e a egreja e cerca do extincto convento dominicano. Para a esquerda vê-se Lisboa como que espreitando os arrabaldes do cimo dos seus ultimos montes. Para a direita é tudo verdores d'essa longa cadéa de jardins e pomares que povoam o valle de Bemfica, limitando o horisonte d'esse lado a poetica serrania de Cintra. Em nossa opinião não ha nos suburbios de Lisboa perspectiva mais bella, aprazivel e pittoresca do que esta.
' A gravura que publicamos a pag. 89 mostra apenas uma parte diminuta d'aquelle extenso e variadissimo panorama.
D'este sitio vae correndo a estrada de Bemfica, como até aqui, sempre por entre quintas e casas de campo mais ou menos ricas, até á egreja parochial.
As mais notaveis por belleza de edificios e de jardins são as seguintes, pela ordem em que vão orlando a estrada:
QUINTA DO sr. JOÃO DA SILVA CARVALHO. — Foi feita no seculo passado pelo negociante estrangeiro Moller, e ha poucos annos comprada e reedificada pelo digno par do reino acima nomeado, filho do benemerito conselheiro de estado José da Silva Carvalho, um dos fundadores da liberdade constitucional dos portuguezes em 1820, e um tambem dos que mais concorreram em 1833 para a restauração d'essa mesma liberdade, e do throno da sra. D. Maria ii, e para a inauguração da nova era de progresso civilisador em Portugal. Singularisa-se esta quinta pela collecção magnifica de plantas exoticas que possue, e por um gabinete photographico perfeitamente organisado pelo proprietario, o qual cultiva com proficiencia este ramo da arte.
QUINTA DO BEAU SÉJOUR. —
Esta graciosa residencia foi fundada ha uns treze annos pela fallecida viscondessa da Regaleira. A casa, que se vê representada em a nossa gravura, está construida n'aquelle gosto moderno, elegante e singelo, das casas de campo inglezas e francezas, a que os primeiros chamam cottage, Sobresae no jardim a todas as mais obras darte um soberbo leão de bronze, de proporções naturaes, e cinzelado com bastante perfeição, o qual está collocado sobre um pedestal de marmore. Pertence agora esta propriedade ao sr. barão da Gloria.
QUINTA DA ALFARROBEIRA. — Acha-se situada sobre o caminho que conduz ao logar do Calhariz, mas a poucos metros de distancia da estrada de Bemfica. Edificou esta magnifica propriedade, na primeira metade do seculo passado, para sua residencia, Frederico Ludovici, architecto do palacio real de Mafra. O palacio e capella estão construidos com aquelle estilo e riqueza que logo á primeira vista denunciam a epocha de D. João v, em que se erigiram. Sua alteza a infanta D. Isabel Maria, sendo regente do reino, na ausencia d'el-rei D. Pedro iv, foi passar nesta quinta o verão de 1827 para se restabelecer de uma gráve doença que tivera. Era então senhor d'esta propriedade um neto do fundador. Actualmente é do sr. Manuel de Campos Pereira.
Deixando de parte muitas outras quintas, dignas de menção se não foramos um pouco apressados, chega-se á
EGREJA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO, freguezia do logar de Bemfica.
É a melhor egreja parochial dos arrabaldes de Lisboa. Foi construida no principio deste seculo junto da egreja antiga, que era pequena e de mesquinha construcção, e que ainda existe ao lado da capella-mór da actual parochia. O novo templo é grande e magestoso. Decoram-n'o interiormente excellentes marmores de côres, polidos ou lavrados com bem acabadas esculpturas. Exteriormente é de uma architectura regular, de boas proporções, mas destituida de belleza. Falta-lhe no frontispicio para estar completo uma das duas torres dos sinos. Fizeram-se as obras á custa de esmolas. A frente da egreja está voltada para oeste, e o adro cae sobre a estrada real. A vista que damos em gravura foi tirada de umas terras d'além do rio que fertilisa e corta todo o valle de Bemfica. Este rio é o que vae banhar a cerca do extincto convento de S. Domingos e a quinta da sra. infanta D. Isabel Maria.
Um pouco antes de se chegar á egreja de Nossa Senhora do Amparo, junto ao chafariz de Bemfica, corre para o lado de oeste a estrada que vae dar ao logar de Calhariz, passando pelo sitio da Buraca, onde está a
QUINTA DA BURACA. — É uma linda vivenda, com boa casa e bonitos jardins, obra do fallecido negociante João Antonio Lopes Pastor. Durante a penosa enfermidade que poz termo, na Ilha da Madeira, á existencia de S. A. I. a sra. D. Maria Amelia, foi esta princeza, em companhia de sua augusta mãe, i procurar algum lenitivo em seus padecimentos n'esta quinta de singular amenidade e socego.
No logar de Calhariz, pequena povoação com sua ermida, situada em terreno elevado, e de mui salubres ares, acha-se a
QUINTA CHAMADA VULGARMENTE DO PERES, porque foi um negociante d'este appellido quem a fez, ou ampliou e aformoseou no primeiro quartel d'este seculo. É uma rica propriedade, tanto pela nobreza dos edificios, disposição e ornatos dos jardins, e corpulencia das arvores silvestres que a assombram, como pela sua extensão, e pela abundancia e variedade das suas producções. Pertenceu ao barão de Rio Tinto, que lhe fez consideraveis melhoramentos. Hoje é do sr. José Iglesias, abastado commerciante e capitalista desta cidade.
O palacio (esta quinta serviu de residencia a sua alteza a sra. infanta D. Anna de Jesus Maria, e ao sr. duque de Loulé, então marquez, depois do seu consorcio desde novembro de 1827 até 3 de fevereiro de 1828, em que partiram para o estrangeiro.
Junto ao extincto convento de S. Domingos, mas em edificio separado, posto que sc communiquem interiormente, está a CAPELLA DOS CASTROS
a qual fica situada no adro da egreja de S. Domingos, em frente desta. Foi fundada com a invocação de Corpus Christi na primeira metade do seculo xvii por D. Francisco de Castro, bispo inquisidor geral, neto do iIlustre vice-rei da India, D. João de Castro, destinando-a para seu jazigo, e de sua familia.
Não prima esta capella em bellezas de architectura, porque é bastantemente singela: mas é grandiosa, tanto pela sua vastidão, que lhe dá proporções de uma boa egreja, como tambem pelos materiaes de que é construida, pois que desde o pavimento, que é de marmore de córes, até á abobada, que é de excellente cantaria, toda a sua fabrica é de pedra bem lavrada.
Tem a capella um só altar, por detraz do qual está o côro. Entre as seis columnas, que decoram o altar, vêem-se sobre peanhas seis custodias com reliquias de santos, tres de cada lado.
No pavilhão ou baldaquino, que faz cobertura ao sacrario, avultam duas imagens, de Nossa Senhora e de S. Domingos, que, além da veneração que lhes é devida, são de subido apreço como objecto archeologico, e como tropheo de uma grande victoria que enramou de loiros as armas portuguezas.
PALACIO E QUINTA DA SERENISSIMA SRA. INFANTA D. ISABEL MARIA.
Fundou esta bella residencia no seculo passado mr. Gerardo Devisme, abastado negociante britannico da praça de Lisboa. Fez a planta do palacio e quinta, e dirigiu as obras o architecto Ignacio de Oliveira Bernardes.
Devisme ornou a quinta com muitas estatuas de marmore, e plantas raras, sobresaindo formosissimas arvores exoticas; e decorou o palacio com variada copia de objectos darte, mormente quadros a oleo, de que era amador. Ao cabo de annos, vindo a enfastiar-se, não d'esta sua propriedade tão encantadora, mas sim do paiz por causa de alguns desgostos que nelle teve, vendeu o palacio e quinta a D. Pedro de Lencastre, terceiro marquez de Abrantes. Este fidalgo conservou por muito tempo a quinta no melhor estado possivel; porém nos ultimos annos da sua longa vida deixou-a cair em decadencia. Cinco annos depois da sua morte, seu neto, tambem D. Pedro de Lencastre, 5º marquez de Abrantes, fez venda desta propriedade em 1834 a sua alteza real a infanta D. Isabel Maria.
Esta princeza estabeleceu alli a sua residencia ordinaria, e fez alguns melhoramentos nos jardins, e obras consideraveis no palacio, augmentando-o para o lado do pateo, onde fica a entrada principal. O palacio tinha duas fachadas para este pateo, construiuse-lhe pois uma terceira, e fechou-se o quarto lado com uma gradaria e portico de ferro.
A frente mais nobre e elegante do edificio estende-se sobre um jardim, rematando nas extremidades em dois corpos, que resaltam do central, e aos quaes fazem coroa duas esbeltas cupulas envidraçadas. Uma d estas dá luz á capella, que é muito rica, resplandecendo o oiro em variadissimos relevos sobre fundo branco por todas as paredes, altar e tecto. A munificencia de sua alteza correspondeu nas alfaias á riqueza com que decorou a sua capella.
A outra cupula pertence á grande sala de recepção, para a qual fazem como de tribunas as janellas do segundo andar. Esta sala é magnifica e de muita belleza, e acha-se ricamente guarnecida.
Encerra tambem este palacio um curioso museu, principiado por mr. Devisme, e augmentado pelo terceiro marquez de Abrantes, e por sua alteza.
A quinta compõe-se de varios jardins adornados com estatuas e lagos de marmore: de ruas de bosque, onde as magnolias e outras arvores de folhagem persistente fazem toldo de perenne verdura; e de pomares e hortas, com seus tanques e viveiros de aves, com um rio que divide a quinta, encanado e represado para servir de lago a uma cascata que sobre elle se levanta a muita altura, offerecendo na sua base passagem como ponte, de uma para outra margem, e no alto um mirante de vistas deliciosas.
Infelizmente padeceu esta quinta ha poucos annos grande devastação nas suas arvores quasi seculares, ordenada com o fim de dar á lavoira alguns metros de terreno, onde anteriormente não rompia o sol a espessura do bosque.
A vista que publicámos em gravura , e que representa esta linda quinta, encaixilhando com os seus arvoredos, de uma parte o palacio, e da outra a egreja do extincto convento dominicano, foi tirada do mirante do fundo da quinta do sr. Antonio Lodi, d'onde se goza um dos mais apraziveis panoramas dos arrabaldes de Lisboa.
PALACIO E QUINTA DO SR. MARQUEZ DE FRONTEIRA.
— Foi edificada esta soberba residencia no seculo xvii por D. João de Mascarenhas, primeiro marquez de Fronteira, e segundo conde da Torre. O palacio está construido no gosto da architectura então em voga na Italia. Tem tres fachadas principaes, todas difierentes em forma e ornatos, todas de bastante nobreza e originalidade. A escada é sumptuosa, e as salas são grandes, e ostentam nas paredes muitos quadros pintados a oleo, em que se véem diversos retratos de familia, avultando entre todos, pelas dimensões do painel, e pela gloria do individuo, o retrato de D. Fernando de Mascarenhas, primeiro conde da Torre.
Está collocado este quadro na sala chamada das batalhas, onde se véem representados os combates em que se distinguiram a sua pericia e valor durante as guerras da restauração de 1640.
O frontispicio da capella, e a fachada do palacio, que lhe fica contigua, estão decorados com graciosos ornamentos, de um genero exquisito e delicado. Deitam para um jardim plantado no gosto moderno.
A gravura que juntámos a pag. 97 mostra a frente do palacio para o jardim principal, E mui vasto este jardim, e conserva a sua antiga planta. É notavel pelos seus cinco lagos de marmore, pelas muitas estatuas que o guarnecem, e mais ainda pela famosa varanda dos reis, com o seu grande lago com estatuas, grutas, balaustradas e vasos de marmore, assim denominada por se adornar com os bustos em marmore de todos os nossos reis até D. João vi. A parte restante da quinta compõe-se de pomares e hortas.
• Pertence actualmente esta quinta ao sr. D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, setimo marquez de Fronteira, quinto marquez de Alorna, oitavo conde da Torre, setimo conde de Assuiuar, mordomo-mór de S. M. a Rainha D. Maria Pia de Saboya, e um dos typos mais completos da antiga aristocracia portuguesa.
VILHENA BARROSA.
in Archivo Pittoresco
Como todas as grandes capitaes, Lisboa, desde que rompeu seu primeiro cinto de muralhas, tem ido absorvendo em si as povoações visinhas. Assim vemos hoje no coração da cidade os sitios onde outrora avultavam villa Quente, Valverde, villa Gallega, villa nova de Andrade e outras mais. N'esse tempo, os terrenos que constituem actualmente os seu suburbios, apenas contavam de longe em longe alguns logarejos e varias quintas. A importancia, povoação, e aformoseamentos dos arrabaldes de Lisboa datam do terremoto de 1755. Depois d'esta catastrophe, muitas familias da cidade ahi se foram estabelecer, umas levadas do terror, não querendo mais habitar no seio de grandes povoações; outras guiadas pela necessidade de se acolherem ás suas fazendas, como unica taboa de salvação depois do naufragio de suas fortunas. Desta epocha por diante começou a edificação em grande escala. Aquelles logarejos, pela maior parte, foram-se ligando uns aos outros; e em breve se uniram á propria capital por uma longa fileira de palacios, casas e jardins, que pouco a pouco foram guarnecendo as estradas por onde se communicava com as visinhas aldeias.
ARRABALDES DO NORTE
Bemfica, Calhariz, Porcalhota, Bellas e Queluz
Saindo pelas barreiras de S. Sebastião da Pedreira, estrada de Bemfica, a uns tres kilometros da praça do Commercio, e em linha recta com a mesma, chega-se aos mais lindos suburbios de Lisboa, situados no ameno e extensissimo valle que vae correndo para o norte em direcção á serra de Cintra. *
Logo ao sair das barreiras está a
QUINTA DE PALHAVÃ.
— Esta propriedade, ainda não ha muitos annos, era celebre pela espessura de seus bosques, pela grandeza dos jardins e preciosa collecção das suas plantas, pela abundancia de estatuas e vasos de marmore que a decoravam, dentre as quaes algumas sobresaiam por excellencia darte, e finalmente pela bondade e frescura de suas aguas. Esta quinta e palacio foram fundados na segunda metade do seculo xvii por D. Luiz Lobo da Silveira, segundo conde de Sarzedas. Seu filho, D. Rodrigo da Silveira, terceiro conde do mesmo titulo, fez-lhe muitos augmentos, entre outros o grande portão da entrada principal, oude avultam as armas desta antiga e illustre familia, que vindo a extinguir-se no seculo passado, reverteram os seus bens para os condes da Ericeira, creados posteriormente marquezes de Louriçal; e pela extincção desta casa succederam nos seus morgados os srs. condes de Lumiares.
No palacio de Palhavã morreu em 7 de dezembro de 1663 a rainha D. Maria Francisca Isabel de Saboya, filha do duque de Nemours, e mulher delrei D. Pedro n, tendo ido para alli convalescer. Serviu tambem aquelle palacio de residencia aos principes D. Antonio, D. Gaspar, e D. José, filhos naturaes mas reconhecidos del-rei D. João v, (o segundo veiu a ser arcebispo de Braga, e o terceiro inquisidor geral de Lisboa), aos quaes o povo appellidava meninos de Palhavã, epitheto que lhes conservou ainda mesmo na velhice.
Durante a longa residencia d'estes principes em Palhavã chegou a quinta ao seu maior esplendor, e mais esmerada cultura. Adornavam-se os seus jardins com a mais rica e bella collecção de plantas exoticas que então havia na capital. Depois da morte dos principes começou a decadencia da quinta, que augmentou posteriormente à invasão franceza de 1808. Porém a grande ruina d'esta propriedade foi causada pelas luctas durante o cerco de Lisboa de 1833, na guerra da restauração da liberdade. Foi theatro de um mortifero combate na tarde e noite de 5 de setembro daquelle anno. Palacio e quinta tudo foi assolado. Desde então progrediu a devastação até ao ponto de reduzirem a terras de trigo os seus bosques, pomares, e jardins. Passado tempo alguns dos seus vasos e as figuras de marmore mais pequenas vieram ornar a varanda do jardim que se prolonga com o palacio do sr. conde de Lumiares, ao Passeio Publico. Porém ainda lá se conservam algumas estatuas colossaes, erguendo-se em meio de cearas, e lagos ornados de figuras, tudo feito em Italia, havendo entre estas obras de arte algumas produceões do celebre esculptor Bernini. Felizmente esta propriedade foi comprada ha pouco pelos srs. condes de Azambuja, que se propõem a restaurar o palacio e quinta, conservando ao primeiro todas as suas feições primitivas.
Continuando pela mesma estrada encontra-se pouco adiante um edificio arruinado, dividindo os dois caminhos que levam a Bemfíca e ao Pinheiro. Era um palacio dos duques de Cadaval, onde se celebraram as pomposas festas do casamento do terceiro duque daquelle titulo, D. Jaime de Mello, com a princeza D. Luiza, filha bastarda e reconhecida del-rei D. Pedro II. 0 terremoto de 1755 destruiu quasi completamente o palacio e a quinta annexa, não offerecendo hoje coisa que interesse aos curiosos, senão esta recordação historica.
Proseguindo chega-se ao sitio de Sete-Rios, donde partem para a direita a estrada das Larangeiras e para a esquerda a de Campolide. Este nome estendia-se até ao largo do Rato em tempos del-rei D. Fernando em que teve começo, derivando-se dos combates que alli houve por occasião do cerco de Lisboa pelas tropas de Castella. Chamava-se então Campo da Lide. Continuando a seguir a estrada de Sete-Rios para Bemfica avulta do lado direito a QUINTA DAS LARANGEIRAS.
' Náo juntámos n esta noticia uma vista d'este palacio porque o estado das obras, que n'elle so fazem ao presente, obstam a que se possa tirar um desenho com perfeição. Dal-a-hemos logo que seja possível.
A quinta das Larangeiras está situada entre as estradas de Bemfica e das Larangeiras, a cinco kilometros de distancia da Praça do Commercio. O palacio e o theatro deitam para a segunda estrada, que vae á-Luz, Telheiras, Carnide, etc. Sobre a primeira abremse magnificos porticos de gradaria de ferro, ornados com figuras de marmore, e com dois esbeltos pavilhões, com suas columnas e estatuas tambem de marmore. Dão entrada para uma rua magestosa, mui larga e comprida, orlada de arvoredo tapetada de relva perennemente viçosa, com um formoso lago, e um elevado obelisco de marmore branco e côr de rosa. Remata esta rua nos jardins do palacio, ficando este em perfeita correspondencia com os referidos porticos e pavilhões.
A nossa gravura representa a metade desta rua para o lado da estrada de Bemfica.
Quasi em frente dos porticos e pavilhões da quinta das Larangeiras vem desembocar um caminho estreito, que conduz á alameda de S. Domingos de Bemfica por entre as quintas de sua alteza a sra. infanta D. Isabel Maria, e do sr. marquez de Fronteira.
A ALAMEDA DE S. DOMINGOS DE BEMFICA é pequena, mas agradavel, porque a povôam arvores copadas e annosas, e porque a guarnecem, por um lado o palacio e jardim d'aquelle fidalgo, e por outro os arvoredos da quinta de sua alteza, que fazem sombra a uma fonte publica, e á entrada principal do seu palacio, e em seguida a egreja e extincto convento dos dominicos. É celebre este logar das cercanias de Lisboa pela feira de arraial que ahi se faz durante o mez de maio, com grande concurrencia de povo aos domingos.
Deu origem a esta feira o seguinte caso. Pouco tempo depois del-rei D. João I ter feito doação dos seus paços de Bemfica á ordem de S. Domingos, encarregou este soberano um commerciante, que ia partir para Allemanha, de lhe mandar fazer n'esse paiz uma imagem de S. Domingos esculpida em madeira, para a offerecer á egreja do novo.convento. Partiu o mercador, e na volta, vindo por mar, levantou-se tão rijo temporal, que se julgou perdido o navio. No meio da consternação geral lembrou-se o mercador de recorrer á intercessão do patriarcha da ordem dominicana. Traz para a tolda a santa imagem: mostra-a aos marinheiros, e todos oram com devoção. D'ahi a pouco bonançou o mar, e em breve surgiu o navio a salvamento no porto de Lisboa. Correu logo a noticia do acontecimento por toda a cidade, que se despovoou para ver e acompanhar a imagem em procissão, desde o logar do desembarque até ao convento de S. Domingos de Bemfica. Por muitos dias consecutivos concorreu alli immensa multidão de fieis. Como o caso succedeu em um domingo de maio, nos annos seguintes foram consagrados todos os domingos d'esse mez a festejar o santo, e commemorar o milagre.
O CONVENTO DE S. DOMINGOS. — Pertenceu á ordem dos prégadores, foi fundado por el-rei D. João i, a instancias do seu privado e chanceller-mór João das Regras.
Correndo o anno de 1399 doou aquelle soberano para o dito fim os paços de Bemfica com a quinta annexa, que desde o reinado de D. Diniz serviam de casa de campo aos nossos monarchas. N'aquelle mesmo anno se estabeleceram os frades dominicos nestes paços, e com o auxilio regio construiram uma egreja de modesta fabrica e mui limitadas proporções.
Fizeram-se pelo decurso do tempo muitas obras de reconstrucção e acrescentamento no tenyjlo e no convento; porém nos principios do seculo XVII todo o edificio ameaçava ruina. Procedeu-se então a uma reedificação quasi geral por diligencias de fr. João de Vasconcellos, prior que era d'este convento. No dia 29 de junho de 1624 lançou este prelado a primeira pedra nos alicerces da nova egreja. Claustro, casa de capitulo, refeitorio e dormitorio, foram tambem feitos de novo. Do primeiro edificio só ficou a sacristia e o côro. O terremoto de 1755 lançou por terra a egreja e convento, que logo depois foram reedificados.
Pelos annos de 1818 ateou-sc no convento um violento incendio, que esteve quasi a ponto de reduzir tudo a cinzas. Na livraria, que ardeu completamente, perderam-se muitos livros raros, e manuscriptos de bastante apreço.
Pela extincção das ordens religiosas ficou por muito tempo sem culto a egreja, e o convento condemnado u uma ruina certa. A ambos valeu a solicitude de sua alteza, a sra. infanta D. Isabel Maria, restituindo o culto ao templo, e comprando o convento, que desde então tem servido de abrigo á pobreza, e tambem serviu de asilo e casa de educação á infancia.
li memoravel este convento nos annaes de Portugal por quatro grandes vultos bistoricos, que o illustraram na vida com o brilho de eminentes virtudes, e de subido engenho, ou que o honraram na morte com o precioso deposito de suas venerandas cinzas.
São esses quatro vultos D. fr. Bartholomeu dos Martyres, fr. Luiz de Sousa, D. João de Castro, e João das Regras.
O primeiro, decorado com a mitra primacial de Braga, e que tão nobre e sabiamente sustentou no concilio tridentino os interesses e dignidade da religião e da patria, foi conventual deste mosteiro.
O segundo, que na vida secular assombrou os inimigos da nossa independência com um acto de heroico patriotismo, e que no claustro edificou a todos como exemplar das virtudes christãs, eternisando ao mesmo tempo o seu nome como um dos nossos escriptores mais elegantes, mais correctos e melifluos, viveu, morreu, e jaz nesta casa religiosa.
O terceiro, ao cabo de uma existencia gloriosa e honradissima, alli foi repousar o corpo, vasio d'aquella alma immensamente grande, que encheu toda a Asia com a fama das suas acções, e com o respeito e prestigio do nome portuguez.
O quarto, finalmente, o eloquente orador, que decidiu as cortes de Coimbra de 1385 a cingir a fronte do mestre de Aviz com a coroa que o direito da legitimidade dava aos filhos de D. Pedro I e da desventurada Ignez de Castro, então presos em Castella pelo rei desse paiz que pretendia assenhorear-se do throno de seu fallecido sogro, el-rei D. Fernando de Portugal; João d' Aregas, ou das Regras, o mais celebre jurisconsulto portuguez do seculo xv, tambem alli descança.
A egreja perdeu na ultima reedificação quasi todos os vestigios de antiguidade, sem adquirir coisa alguma que a recommende como monumento artistico.
O mausoleo de João das Regras levantava-se antigamente no meio da egreja; mas quando esta se reconstruiu no seculo xvii foi mudado para junto da porta do templo, á direita de quem nelle entra. É de marmore branco, e assenta sobre quatro leões.
A caixa tem por unico adorno oito escudos, representando todos o brasão de armas do chanceller de D. João i, cuja figura em alto relevo está deitada sobre a tampa. A estatua tem vestes talares: na cabeça o barrete doutoral, e ao lado o estoque, insignia de cavalleiro. Aos pés está um cão, emblema da fidelidade, posto como em guarda e vigia. Em volta da tampa lé-se em caracteres gothicos o seguinte lettreiro: Aqui jaz João das Regras Cavaleiro Doutor em Leys, privado tíelRei D. João fundador deste mosteiro, finou tres dias do mez de Maio era de 1442 (corresponde ao anno do nascimento de Christo de 1404).
João das Regras, largamente recompensado em honras e bens pelo mestre de Aviz, foi progenitor dos condes de Monsanto, depois marquezes de Cascaes, cuja familia se extinguiu no seculo passado.
A cerca do convento foi vendida pelo estado: é hoje propriedade particular. Não merecia que se fallasse n'ella, se fr. Luiz de Sousa a não celebrara na sua historia de S. Domingos, descrevendo-a com tão vivas e finas côres, que mais parece obra de pincel que de penna. A fonte do Satyro, que elle engranece e exalta; a outra fonte de que tanto gostava o cardeal rei pela frialdade das aguas; os párreiraes, em que, no dizer d'elle—fazem toucas as voltas, e frescura das parras; colaqres de pedraria as uvas, segundo o tempo e as cores dellas, já topazios, já rubis, primeiro esmeraldas — tudo isto ainda lá está, mais ou menos bem conservado. O quadro porém ostenta-se tão humilde e mesquinho a quem o contempla ao natural, quão bello e grandioso a quem o lê na chronica dominicana. Mas não falta n'esta a verdade; naquelle é que falta essa imaginação fecunda, que por meio das pompas do estilo, e das galas da poesia, derramava em tudo quanto tocava nova graça, mais fulgor e formosura.
Voltando a estrada de Bemfica, logo acima da quinta das Larangeiras, mas do lado opposto, está a
EGREJA DO EXTINCTO CONVENTO DE SANTO ANTONIO DA CONVALECENÇA, que pertenceu aos religiosos capuchos da provincia de Santo Antonio. Teve principio em 1640 como casa de saude dos ditos frades, a qual chamavam Convalecença, nome que depois se acrescentou ao do convento, e que tambem se ficou alternando com o do sitio, que é o da Cruz da Pedra. O convento e egreja foram reedificados e augmentados em 1746. Pela extincção das ordens religiosas foi vendido o primeiro a João Gomes da Costa, que o transformou em uma casa nobre para sua residencia no verão, e da cerca fez uma bonita quinta, mais de regalo que de rendimento. Hoje é de seus herdeiros.
A egreja está bem conservada, e no exercicio do culto. O seu lindo cruzeiro de variados lavores vé-se ao presente dentro da quinta das Larangeiras, e proximo das grades quasi fronteiras ao templo. Fez acquisição d'elle o sr. conde do Farrobo durante o tempo em que a egreja, em seguida á suppressão do convento, esteve fechada, e como em abandono.
Proseguindo pela estrada, pouco mais adiante d'aquella egreja, e desse mesmo lado, encontra-se a
QUINTA DE ANTONIO LODI. — É uma vivenda pequena mas linda, composta de excellente casa, curiosamente ornada; de jardins e bosque com uma grande lagôa, e muita variedade de objectos darte e construcções pittorescas, como estatuas, bustos, um museu, tanques, mirantes, casas de fresco, de banho, e de jogos, e uma ermida construida á maneira de uma cathedral gothica. Do segundo andar do mirante, que se ergue no fundo da quinta, sobre um grande lago, goza-se a vista de uma formosissima paizagem. Formam o centro do quadro as quintas e palacios da serenissima senhora infanta D. Isabel Maria, dos srs. marquezes de Fronteira, e do sr. Welhouse, e a egreja e cerca do extincto convento dominicano. Para a esquerda vê-se Lisboa como que espreitando os arrabaldes do cimo dos seus ultimos montes. Para a direita é tudo verdores d'essa longa cadéa de jardins e pomares que povoam o valle de Bemfica, limitando o horisonte d'esse lado a poetica serrania de Cintra. Em nossa opinião não ha nos suburbios de Lisboa perspectiva mais bella, aprazivel e pittoresca do que esta.
' A gravura que publicamos a pag. 89 mostra apenas uma parte diminuta d'aquelle extenso e variadissimo panorama.
D'este sitio vae correndo a estrada de Bemfica, como até aqui, sempre por entre quintas e casas de campo mais ou menos ricas, até á egreja parochial.
As mais notaveis por belleza de edificios e de jardins são as seguintes, pela ordem em que vão orlando a estrada:
QUINTA DO sr. JOÃO DA SILVA CARVALHO. — Foi feita no seculo passado pelo negociante estrangeiro Moller, e ha poucos annos comprada e reedificada pelo digno par do reino acima nomeado, filho do benemerito conselheiro de estado José da Silva Carvalho, um dos fundadores da liberdade constitucional dos portuguezes em 1820, e um tambem dos que mais concorreram em 1833 para a restauração d'essa mesma liberdade, e do throno da sra. D. Maria ii, e para a inauguração da nova era de progresso civilisador em Portugal. Singularisa-se esta quinta pela collecção magnifica de plantas exoticas que possue, e por um gabinete photographico perfeitamente organisado pelo proprietario, o qual cultiva com proficiencia este ramo da arte.
QUINTA DO BEAU SÉJOUR. —
Esta graciosa residencia foi fundada ha uns treze annos pela fallecida viscondessa da Regaleira. A casa, que se vê representada em a nossa gravura, está construida n'aquelle gosto moderno, elegante e singelo, das casas de campo inglezas e francezas, a que os primeiros chamam cottage, Sobresae no jardim a todas as mais obras darte um soberbo leão de bronze, de proporções naturaes, e cinzelado com bastante perfeição, o qual está collocado sobre um pedestal de marmore. Pertence agora esta propriedade ao sr. barão da Gloria.
QUINTA DA ALFARROBEIRA. — Acha-se situada sobre o caminho que conduz ao logar do Calhariz, mas a poucos metros de distancia da estrada de Bemfica. Edificou esta magnifica propriedade, na primeira metade do seculo passado, para sua residencia, Frederico Ludovici, architecto do palacio real de Mafra. O palacio e capella estão construidos com aquelle estilo e riqueza que logo á primeira vista denunciam a epocha de D. João v, em que se erigiram. Sua alteza a infanta D. Isabel Maria, sendo regente do reino, na ausencia d'el-rei D. Pedro iv, foi passar nesta quinta o verão de 1827 para se restabelecer de uma gráve doença que tivera. Era então senhor d'esta propriedade um neto do fundador. Actualmente é do sr. Manuel de Campos Pereira.
Deixando de parte muitas outras quintas, dignas de menção se não foramos um pouco apressados, chega-se á
EGREJA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO, freguezia do logar de Bemfica.
Um pouco antes de se chegar á egreja de Nossa Senhora do Amparo, junto ao chafariz de Bemfica, corre para o lado de oeste a estrada que vae dar ao logar de Calhariz, passando pelo sitio da Buraca, onde está a
QUINTA DA BURACA. — É uma linda vivenda, com boa casa e bonitos jardins, obra do fallecido negociante João Antonio Lopes Pastor. Durante a penosa enfermidade que poz termo, na Ilha da Madeira, á existencia de S. A. I. a sra. D. Maria Amelia, foi esta princeza, em companhia de sua augusta mãe, i procurar algum lenitivo em seus padecimentos n'esta quinta de singular amenidade e socego.
No logar de Calhariz, pequena povoação com sua ermida, situada em terreno elevado, e de mui salubres ares, acha-se a
QUINTA CHAMADA VULGARMENTE DO PERES, porque foi um negociante d'este appellido quem a fez, ou ampliou e aformoseou no primeiro quartel d'este seculo. É uma rica propriedade, tanto pela nobreza dos edificios, disposição e ornatos dos jardins, e corpulencia das arvores silvestres que a assombram, como pela sua extensão, e pela abundancia e variedade das suas producções. Pertenceu ao barão de Rio Tinto, que lhe fez consideraveis melhoramentos. Hoje é do sr. José Iglesias, abastado commerciante e capitalista desta cidade.
O palacio (esta quinta serviu de residencia a sua alteza a sra. infanta D. Anna de Jesus Maria, e ao sr. duque de Loulé, então marquez, depois do seu consorcio desde novembro de 1827 até 3 de fevereiro de 1828, em que partiram para o estrangeiro.
Junto ao extincto convento de S. Domingos, mas em edificio separado, posto que sc communiquem interiormente, está a CAPELLA DOS CASTROS
a qual fica situada no adro da egreja de S. Domingos, em frente desta. Foi fundada com a invocação de Corpus Christi na primeira metade do seculo xvii por D. Francisco de Castro, bispo inquisidor geral, neto do iIlustre vice-rei da India, D. João de Castro, destinando-a para seu jazigo, e de sua familia.
Não prima esta capella em bellezas de architectura, porque é bastantemente singela: mas é grandiosa, tanto pela sua vastidão, que lhe dá proporções de uma boa egreja, como tambem pelos materiaes de que é construida, pois que desde o pavimento, que é de marmore de córes, até á abobada, que é de excellente cantaria, toda a sua fabrica é de pedra bem lavrada.
Tem a capella um só altar, por detraz do qual está o côro. Entre as seis columnas, que decoram o altar, vêem-se sobre peanhas seis custodias com reliquias de santos, tres de cada lado.
No pavilhão ou baldaquino, que faz cobertura ao sacrario, avultam duas imagens, de Nossa Senhora e de S. Domingos, que, além da veneração que lhes é devida, são de subido apreço como objecto archeologico, e como tropheo de uma grande victoria que enramou de loiros as armas portuguezas.
PALACIO E QUINTA DA SERENISSIMA SRA. INFANTA D. ISABEL MARIA.
Fundou esta bella residencia no seculo passado mr. Gerardo Devisme, abastado negociante britannico da praça de Lisboa. Fez a planta do palacio e quinta, e dirigiu as obras o architecto Ignacio de Oliveira Bernardes.
Devisme ornou a quinta com muitas estatuas de marmore, e plantas raras, sobresaindo formosissimas arvores exoticas; e decorou o palacio com variada copia de objectos darte, mormente quadros a oleo, de que era amador. Ao cabo de annos, vindo a enfastiar-se, não d'esta sua propriedade tão encantadora, mas sim do paiz por causa de alguns desgostos que nelle teve, vendeu o palacio e quinta a D. Pedro de Lencastre, terceiro marquez de Abrantes. Este fidalgo conservou por muito tempo a quinta no melhor estado possivel; porém nos ultimos annos da sua longa vida deixou-a cair em decadencia. Cinco annos depois da sua morte, seu neto, tambem D. Pedro de Lencastre, 5º marquez de Abrantes, fez venda desta propriedade em 1834 a sua alteza real a infanta D. Isabel Maria.
Esta princeza estabeleceu alli a sua residencia ordinaria, e fez alguns melhoramentos nos jardins, e obras consideraveis no palacio, augmentando-o para o lado do pateo, onde fica a entrada principal. O palacio tinha duas fachadas para este pateo, construiuse-lhe pois uma terceira, e fechou-se o quarto lado com uma gradaria e portico de ferro.
A frente mais nobre e elegante do edificio estende-se sobre um jardim, rematando nas extremidades em dois corpos, que resaltam do central, e aos quaes fazem coroa duas esbeltas cupulas envidraçadas. Uma d estas dá luz á capella, que é muito rica, resplandecendo o oiro em variadissimos relevos sobre fundo branco por todas as paredes, altar e tecto. A munificencia de sua alteza correspondeu nas alfaias á riqueza com que decorou a sua capella.
A outra cupula pertence á grande sala de recepção, para a qual fazem como de tribunas as janellas do segundo andar. Esta sala é magnifica e de muita belleza, e acha-se ricamente guarnecida.
Encerra tambem este palacio um curioso museu, principiado por mr. Devisme, e augmentado pelo terceiro marquez de Abrantes, e por sua alteza.
A quinta compõe-se de varios jardins adornados com estatuas e lagos de marmore: de ruas de bosque, onde as magnolias e outras arvores de folhagem persistente fazem toldo de perenne verdura; e de pomares e hortas, com seus tanques e viveiros de aves, com um rio que divide a quinta, encanado e represado para servir de lago a uma cascata que sobre elle se levanta a muita altura, offerecendo na sua base passagem como ponte, de uma para outra margem, e no alto um mirante de vistas deliciosas.
Infelizmente padeceu esta quinta ha poucos annos grande devastação nas suas arvores quasi seculares, ordenada com o fim de dar á lavoira alguns metros de terreno, onde anteriormente não rompia o sol a espessura do bosque.
A vista que publicámos em gravura , e que representa esta linda quinta, encaixilhando com os seus arvoredos, de uma parte o palacio, e da outra a egreja do extincto convento dominicano, foi tirada do mirante do fundo da quinta do sr. Antonio Lodi, d'onde se goza um dos mais apraziveis panoramas dos arrabaldes de Lisboa.
PALACIO E QUINTA DO SR. MARQUEZ DE FRONTEIRA.
— Foi edificada esta soberba residencia no seculo xvii por D. João de Mascarenhas, primeiro marquez de Fronteira, e segundo conde da Torre. O palacio está construido no gosto da architectura então em voga na Italia. Tem tres fachadas principaes, todas difierentes em forma e ornatos, todas de bastante nobreza e originalidade. A escada é sumptuosa, e as salas são grandes, e ostentam nas paredes muitos quadros pintados a oleo, em que se véem diversos retratos de familia, avultando entre todos, pelas dimensões do painel, e pela gloria do individuo, o retrato de D. Fernando de Mascarenhas, primeiro conde da Torre.
Está collocado este quadro na sala chamada das batalhas, onde se véem representados os combates em que se distinguiram a sua pericia e valor durante as guerras da restauração de 1640.
O frontispicio da capella, e a fachada do palacio, que lhe fica contigua, estão decorados com graciosos ornamentos, de um genero exquisito e delicado. Deitam para um jardim plantado no gosto moderno.
A gravura que juntámos a pag. 97 mostra a frente do palacio para o jardim principal, E mui vasto este jardim, e conserva a sua antiga planta. É notavel pelos seus cinco lagos de marmore, pelas muitas estatuas que o guarnecem, e mais ainda pela famosa varanda dos reis, com o seu grande lago com estatuas, grutas, balaustradas e vasos de marmore, assim denominada por se adornar com os bustos em marmore de todos os nossos reis até D. João vi. A parte restante da quinta compõe-se de pomares e hortas.
• Pertence actualmente esta quinta ao sr. D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, setimo marquez de Fronteira, quinto marquez de Alorna, oitavo conde da Torre, setimo conde de Assuiuar, mordomo-mór de S. M. a Rainha D. Maria Pia de Saboya, e um dos typos mais completos da antiga aristocracia portuguesa.
VILHENA BARROSA.
quarta-feira, maio 20, 2015
Fontória 2004
Eram 3 da manhã e eu estava tão aflita para fazer chichi que pedi ao porteiro do Fontória para me deixar ir à casa de banho. Ele conhece-me de longa data, porque paro no sinal vermelho ali em frente à porta quando saio já tarde da minha baiuca preferida e lhe digo sempre boa noite, e respondeu-me que sim.
E lá desci eu, pela primeira vez em muitos anos, as escadas daquela tão famosa casa de putas, enquanto o som da música manhosa de dança subia escadas acima ao meu encontro. Atravessei a sala de estar fazendo esforço para habituar os olhos à meia luz e não tropeçar em nada, senti os homes olhar-me como quem diz "olha esta é bem boua" (em estrangeiro, claro está!, que estávamos em noites do Euro – e para puta do Fontória eu nem estava mal... ), cumprimentei os empregados portugueses, que me olharam um bocado admirados, e lá descobri a casa de banho das mulheres, ao fundo do balcão à esquerda, por trás de um biombo.
Entrei e vi uma mulheraça linda, nova, alta, loira e de leste, que esperava pela sua vez enquanto se retocava ao espelho. Disse-lhe que era bonita, e era mesmo. Ela agradeceu e sorriu, sem me olhar nos olhos. E ficámos as duas à espera.
Quando a outra saiu pareceu-me portuguesa, porque não se notava sotaque nenhum. Tinha os cabelos escuros e era mais velha. Depois de um silêncio em que olhei para o espelho, ainda à espera da minha vez, foi ela que começou a falar comigo, assim como se eu fosse uma colega, e me disse "Tive que apanhar os cabelos, que o raio do homem parece que me quer lavar as orelhas... A ver se o consigo entusiasmar...". E encolheu os ombros.
Quando saí já as duas estavam de volta ao serviço, na sala principal.
Dei um toque de despedida no ombro da do cabelo apanhado, como se lhe desse um beijo.
Eu gosto de putas.
De putas verdadeiras, das profissionais.
Mistura de compaixão e carinho.
Parecido com o que sinto pelos reclusos que visito de tempos a tempos, nas festas do Natal.
E apeteceu-me compartilhar isto convosco.
(Mesmo que não ande por aí ninguém...)
Lisboa, 18junho 2004
E lá desci eu, pela primeira vez em muitos anos, as escadas daquela tão famosa casa de putas, enquanto o som da música manhosa de dança subia escadas acima ao meu encontro. Atravessei a sala de estar fazendo esforço para habituar os olhos à meia luz e não tropeçar em nada, senti os homes olhar-me como quem diz "olha esta é bem boua" (em estrangeiro, claro está!, que estávamos em noites do Euro – e para puta do Fontória eu nem estava mal... ), cumprimentei os empregados portugueses, que me olharam um bocado admirados, e lá descobri a casa de banho das mulheres, ao fundo do balcão à esquerda, por trás de um biombo.
Entrei e vi uma mulheraça linda, nova, alta, loira e de leste, que esperava pela sua vez enquanto se retocava ao espelho. Disse-lhe que era bonita, e era mesmo. Ela agradeceu e sorriu, sem me olhar nos olhos. E ficámos as duas à espera.
Quando a outra saiu pareceu-me portuguesa, porque não se notava sotaque nenhum. Tinha os cabelos escuros e era mais velha. Depois de um silêncio em que olhei para o espelho, ainda à espera da minha vez, foi ela que começou a falar comigo, assim como se eu fosse uma colega, e me disse "Tive que apanhar os cabelos, que o raio do homem parece que me quer lavar as orelhas... A ver se o consigo entusiasmar...". E encolheu os ombros.
Quando saí já as duas estavam de volta ao serviço, na sala principal.
Dei um toque de despedida no ombro da do cabelo apanhado, como se lhe desse um beijo.
Eu gosto de putas.
De putas verdadeiras, das profissionais.
Mistura de compaixão e carinho.
Parecido com o que sinto pelos reclusos que visito de tempos a tempos, nas festas do Natal.
E apeteceu-me compartilhar isto convosco.
(Mesmo que não ande por aí ninguém...)
Lisboa, 18junho 2004
sexta-feira, agosto 15, 2014
sexta-feira, junho 06, 2014
quarta-feira, janeiro 29, 2014
domingo, janeiro 19, 2014
malmequeres
eu só queria que viesses buscar-me
e me levasses ao cimo do monte
até que passasse este inverno
este silêncio de vaguear por mim
à procura do que falta
se tu viesses buscar-me
havíamos de colher malmequeres
e cantaríamos glórias ao Ser...
...trocámos duas flores amarelas
e seguimos lado a lado
com um certo calor no corpo
e frio no rosto
da tarde
trocámos flores amarelas
e um certo calor de mãos
domingo
na praça
e me levasses ao cimo do monte
até que passasse este inverno
este silêncio de vaguear por mim
à procura do que falta
se tu viesses buscar-me
havíamos de colher malmequeres
e cantaríamos glórias ao Ser...
...trocámos duas flores amarelas
e seguimos lado a lado
com um certo calor no corpo
e frio no rosto
da tarde
trocámos flores amarelas
e um certo calor de mãos
domingo
na praça
domingo, setembro 01, 2013
hoje é dia de ver este filme. por são francisco de assis.
se este filme fosse parar às escolas a revolução estaria na rua. sem sangue.
sê compassivo com o mais pequeno caracol.
sê compassivo com o mais pequeno caracol.
segunda-feira, abril 29, 2013
Tolentino de Mendonça e o Cântico dos Cânticos
Ah és bela minha amada és tão bela teus olhos são pombas
por detrás de teu véu
teu cabelo um rebanho de cabras que descem do monte Galaad teus dentes rebanho de ovelhas tosquiadas que sobem do banho todas geraram suas crias nenhuma há estéril entre elas como fita escarlate teus lábios que formosa é tua boca tuas faces são metades de romãs por detrás de teu véu teu pescoço é a torre de David erguida sobre troféus
dela pendem mil escudos todos broquéis de valorosos
teus seios são dois filhotes gémeos de uma gazela
que se apascentam entre os lírios
antes que o dia expire e as sombras se alonguem
irei por mim ao monte da mirra e à colina do incenso
ah és bela minha amiga defeito não há em ti
Comigo do Líbano esposa vem comigo do Líbano
descerás do cimo de Amaná do cume de Senir e do Hermon
dos esconderijos dos leões dos barrancos dos leopardos
roubaste-me o coração minha irmã minha esposa roubaste-me o coração com um só dos teus olhares
com uma só conta dos teus colares
que doces tuas carícias minha irmã minha noiva melhores tuas carícias do que vinho
a fragrância de teus perfumes do que todos os odores
teus lábios são favos escorrendo ó esposa mel e leite sob a tua língua
o aroma dos teus vestidos é o aroma do Líbano.
És jardim fechado minha irmã minha esposa um jardim fechado uma fonte selada
as tuas plantas um bosque de romãzeiras com frutos deliciosos
com cipros e nardos nardo e açafrão
cálamo e canela e toda a sorte de árvores de incenso
mirra e aloés e os bálsamos escolhidos
a fonte do jardim uma cisterna de água viva que jorra desde o Líbano
levanta-te vento norte vem vento do sul soprai no meu jardim espalhem os seus perfumes
entra o meu amado no seu jardim e come seus frutos doces
(in «Cântico dos Cânticos»,
tradução do hebraico, introdução e notas de José Tolentino Mendonça*,
com ilustrações de Ilda David, Edição bilingue, Cotovia 1997)
José Tolentino Mendonça (Machico, 1965). Capelão da Universidade Católica de Lisboa até o ano de 2000, quando foi para Roma, onde se doutorou, tendo regressado a Lisboa, onde dá aulas na Faculdade de Teologia.
"Os Dias Contados", 1990; - poesia
"As Estratégias do Desejo: Um Discurso Bíblico sobre a Sexualidade",1994 - ensaio
"Longe Não Sabia", 1997 - poesia
"A que Distância Deixaste o Coração", 1998 - poesia
"Baldios", 1999 - poesia
"De igual para igual" (2001) - poesia
"A estrada branca" (2005). - poesia
Em 2005 publicou a peça de teatro "Perdoar Helena", já representada pelos Artistas Unidos, e a sua tese de doutoramento, "A Construção de Jesus".
Sobre a sua vocação religiosa confessou que "Foi uma coisa de juventude, inconsequente, imprudente, inesperada, que eu procuro manter. Ser padre é um nomadismo interior constante. É aceitar a pobreza como condição. E a pobreza é uma coisa chata de viver. É achar que isso pode ser uma forma de dizer alguma coisa ao seu tempo".
Tolentino Mendonça é autor da elogiada tradução do "Cântico dos Cânticos" (1997), publicou vários ensaios, escreveu teatro e está a traduzir os "Salmos".
teu cabelo um rebanho de cabras que descem do monte Galaad teus dentes rebanho de ovelhas tosquiadas que sobem do banho todas geraram suas crias nenhuma há estéril entre elas como fita escarlate teus lábios que formosa é tua boca tuas faces são metades de romãs por detrás de teu véu teu pescoço é a torre de David erguida sobre troféus
dela pendem mil escudos todos broquéis de valorosos
teus seios são dois filhotes gémeos de uma gazela
que se apascentam entre os lírios
antes que o dia expire e as sombras se alonguem
irei por mim ao monte da mirra e à colina do incenso
ah és bela minha amiga defeito não há em ti
Comigo do Líbano esposa vem comigo do Líbano
descerás do cimo de Amaná do cume de Senir e do Hermon
dos esconderijos dos leões dos barrancos dos leopardos
roubaste-me o coração minha irmã minha esposa roubaste-me o coração com um só dos teus olhares
com uma só conta dos teus colares
que doces tuas carícias minha irmã minha noiva melhores tuas carícias do que vinho
a fragrância de teus perfumes do que todos os odores
teus lábios são favos escorrendo ó esposa mel e leite sob a tua língua
o aroma dos teus vestidos é o aroma do Líbano.
És jardim fechado minha irmã minha esposa um jardim fechado uma fonte selada
as tuas plantas um bosque de romãzeiras com frutos deliciosos
com cipros e nardos nardo e açafrão
cálamo e canela e toda a sorte de árvores de incenso
mirra e aloés e os bálsamos escolhidos
a fonte do jardim uma cisterna de água viva que jorra desde o Líbano
levanta-te vento norte vem vento do sul soprai no meu jardim espalhem os seus perfumes
entra o meu amado no seu jardim e come seus frutos doces
(in «Cântico dos Cânticos»,
tradução do hebraico, introdução e notas de José Tolentino Mendonça*,
com ilustrações de Ilda David, Edição bilingue, Cotovia 1997)
José Tolentino Mendonça (Machico, 1965). Capelão da Universidade Católica de Lisboa até o ano de 2000, quando foi para Roma, onde se doutorou, tendo regressado a Lisboa, onde dá aulas na Faculdade de Teologia.
"Os Dias Contados", 1990; - poesia
"As Estratégias do Desejo: Um Discurso Bíblico sobre a Sexualidade",1994 - ensaio
"Longe Não Sabia", 1997 - poesia
"A que Distância Deixaste o Coração", 1998 - poesia
"Baldios", 1999 - poesia
"De igual para igual" (2001) - poesia
"A estrada branca" (2005). - poesia
Em 2005 publicou a peça de teatro "Perdoar Helena", já representada pelos Artistas Unidos, e a sua tese de doutoramento, "A Construção de Jesus".
Sobre a sua vocação religiosa confessou que "Foi uma coisa de juventude, inconsequente, imprudente, inesperada, que eu procuro manter. Ser padre é um nomadismo interior constante. É aceitar a pobreza como condição. E a pobreza é uma coisa chata de viver. É achar que isso pode ser uma forma de dizer alguma coisa ao seu tempo".
Tolentino Mendonça é autor da elogiada tradução do "Cântico dos Cânticos" (1997), publicou vários ensaios, escreveu teatro e está a traduzir os "Salmos".
sexta-feira, março 30, 2012
sábado, junho 05, 2010
terça-feira, fevereiro 16, 2010
sábado, janeiro 23, 2010
sexta-feira, janeiro 08, 2010
segunda-feira, janeiro 04, 2010
quarta-feira, dezembro 16, 2009
Ode ao Gato
Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite escura até aos olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa
única como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
é firme e subtil como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma única
ranhura
para lançar as moedas da noite.
Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o mais e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
A minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.
Pablo Neruda
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, voo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.
O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato
do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite escura até aos olhos de ouro.
Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa
única como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
é firme e subtil como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma única
ranhura
para lançar as moedas da noite.
Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no chão,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.
Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gatos, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.
Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o mais e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
A minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.
Pablo Neruda
quinta-feira, dezembro 10, 2009
quarta-feira, novembro 25, 2009
verão?
As borboletas voam sobre o meu jardim
São cores vivas, pousam sobre as "onze horas"
Nas rosas claras, violetas e jasmins
Um beija-flor traindo a rosa amarela
Beijou a bela margarida infiel
Papoula e dália estão cravadas de ciúmes
E o beija-flor beijando flores a granel
Pétalas, asas amarelas
Pétalas, espinho seco
Folha, flor, lagarta
Pétalas
As flores voam e voltam na outra estação
Só serei flor quando tu fores Verão
Alceu Valença...
quarta-feira, outubro 21, 2009
segunda-feira, outubro 05, 2009
quarta-feira, janeiro 07, 2009
A deusa da Liberdade tem um gato a seus pés
Miu e mau eram os nomes que no Antigo Egipto se davam aos gatos. Mas a palavra gato (e cat, gatto, chat, Katze, etc.) vem de uma outra palavra do Antigo Egipto – utchat, mas já lá iremos.
Antes de serem feitos estudos genéticos, pensava-se que a domesticação do gato teria ocorrido várias vezes em várias partes do mundo, mas hoje sabe-se que todos os gatos domésticos tiveram a sua origem numa única parte do mundo, no Crescente Fértil (entre os rios Nilo, Tigris e Eufrates). O gato bravo – felis silvestris (FS), subdivide-se em 5 subespécies: FS silvestris (na Europa); FS lybica (norte de África e Médio Oriente); FS cafra (sul de África); FS bieti (deserto da China); e FS ornata (Paquistão, nordeste da Índia, Mongólia e norte da china). O gato domesticado – FS catus, é descendente apenas do FS lybica, tendo, depois de domesticado, se cruzado com as outras subespécies.
Ao contrário dos outros animais que foram domesticados, o gato participou activamente na domesticação, foi ele que veio ter connosco. E essa associação começou com as primeiras civilizações. Estas surgiram com a agricultura, há cerca de 12 mil anos atrás no Médio Oriente, e mais tarde no Sudeste da Ásia, Índia e China e América Central há cerca de 8 mil anos, entre outros lugares. Não se conhecem as razões exactas do surgimento da agricultura, mas as alterações climáticas devem ter contribuído bastante porque surgiu em várias partes do mundo relativamente ao mesmo tempo. Sabe-se que antes da agricultura já existiam comunidades humanas que faziam pão, há cerca de 24 mil anos, por isso devem ter sido múltiplas as causas para o seu surgimento.
O armazenamento dos cereais atraiu inúmeros roedores, que por sua vez atraiu os gatos selvagens que com o tempo se acostumaram a alguns humanos e estes aos gatos, vivendo desde então lado a lado ou mesmo conjuntamente. Os gatos eram tolerados e até queridos, por controlarem o número de roedores, vivendo à vontade, livres de entrar e sair entre as comunidades humanas, não sendo propriedade de ninguém. A prova da associação mais antiga entre essas duas espécies data de há 9 500 anos na ilha de Chipre onde foram encontrados numa sepultura as ossadas de um humano e de um gato juntos. Acrescenta-se que na ilha de Chipre não havia gatos nativos. O estudo genético mostrou também que o FS catus provém de pelo menos 5 linhagens maternais do FS lybica, o que sugere a possibilidade de ter havido mais que uma domesticação, mas todas restringidas ao Crescente Fértil do Médio Oriente. Em termos arqueológicos as mais antigas provas dessa associação foram encontradas no Antigo Egipto há cerca de 6 mil anos atrás, e daqui foram levados para outras civilizações, que os levaram para o mundo inteiro.
Antes de os deuses terem morrido de riso ao ouvir um deles dizer que era o único, nas palavras de Nietzsche, antes de se abstrair a razão humana e se criar um deus único, os antigos olharam para os outros animais e abstraíram deles certas qualidades, criando seres sobrenaturais ou divinos; tinham o culto da natureza. O principal deus egípcio, simbolizando o poder do sol era Ré, e devido à sua importância era associado a outros deuses, como Amon, ficando Amon-Rá. Segundo a mitologia Egípcia, durante a noite, Ré ficava vulnerável a ser atacado por uma Serpente. Os gatos durante a noite guardavam parte da luz do sol nos seus olhos e protegiam Ré da Grande Serpente. A grande utilidade dos gatos mais a sua beleza e nobreza de carácter deram origem a muitas entidades divinas. Assim, os gatos não eram considerados deuses, eram antes considerados protegidos pelos deuses, ou até, suas manifestações.
A deusa Bastet, representada por uma mulher com cabeça de gata, era a protectora dos gatos e inimiga das serpentes, deusa da alegria, da agilidade e da saúde, do amor maternal e da fertilidade, guardiã do lar e das crianças. Quando enraivecida transformava-se em Sekhmet, mulher com cabeça de leão, deusa da guerra e das doenças, transformando-se de novo na dócil Bastet depois de se acalmar. Mais tarde é representada também na forma de uma gata e passa a estar associada não só ao sol, mas também à lua. No período nocturno passa a estar associada sobretudo à fertilidade, à sexualidade e sensualidade. Bastet passa a Pasht, e daqui veio pussy, que em inglês significa gato, entre outras coisas.
Utchat era o olho de Ré, que é a origem da palavra gato, que vem do latim catus. Utchat, o olho de Ré ou de Horus era um símbolo protector muito importante, presente em muitos sítios desde casas, barcos a amuletos fúnebres. Olho de Ré, o olho divino que vê tudo, ainda hoje está presente na Maçonaria e no selo oficial dos EUA. Com o tempo este olho de Ré passa a estar associado a Bastet e ao olho-de-gato. Esse olho que reflecte a luz durante a noite e se assemelha a uma lua com a sua pupila umas vezes aberta, outras vezes fechada.
Do Egipto os gatos foram levados para outras civilizações, acabando por se encontrarem praticamente em todo o mundo. Devido à sua beleza, e à sua utilidade como caçadores de animais que facilmente se transformariam em pragas, os gatos foram de imediato aceites como animais de companhia e entraram para as respectivas mitologias. Na China davam boa sorte, em especial na área financeira, e espantavam os espíritos malignos. Tinham também um deus relacionado com a agricultura que assumia a sua forma. No Sudeste Asiático e Índia, influenciados pelo Budismo, os gatos eram um símbolo de sabedoria, prudência, auto-disciplina e meditação. Consta uma lenda ambígua, que relata que no momento da morte de Buda, “o gato” em vez de se lamentar, continuou indiferente a comer um rato; sugerindo que foi o único animal a compreender realmente a mensagem de Buda. No Japão, dizia-se que quando um gato morria, este transformava-se num espírito evoluído.
Na Europa Antiga, à semelhança de todas as outras civilizações, o gato foi bem acolhido, não só devido à sua utilidade (diz um provérbio – aquele que não alimentar o gato vai ter de alimentar os ratos) mas também devido à sua natureza que deu origem também a muitas entidades divinas, e muitas, muitas lendas.
Nos povos nórdicos, não só os vikings, mas em geral todos os povos germânicos, existia uma deusa com o nome de Freyja (que mais tarde deu Friday, Freitag, Fredag..., o dia de Freyja) que era simbolizada por uma mulher loira a conduzir uma carruagem puxada por dois gatos – Bygul (ouro de abelha – mel) e Trjegul (ouro de árvore – âmbar). Era a deusa do amor (tinham o costume de celebrar os casamentos às sextas-feiras), da beleza, da sexualidade, da fertilidade e do bem-estar, e também do nascimento e da morte. Era quem conduzia os heróis mortos em batalha, dando metade das almas a Odin, rei dos deuses (que o iriam ajudar a combater gigantes e monstros), ficando com a outra metade no seu domínio onde eram aquecidos e bem tratados, e onde mais tarde se juntariam às suas amantes ou esposas. Os gatos eram os animais preferidos da deusa, simbolizando carinho, sensualidade e fertilidade. Freyja, mais tarde, irá influenciar em muito, a visão que se tinha do gato na Idade Média cristianizada, como reacção, e de certa forma ainda a de hoje.
No Islão o gato sempre foi visto como uma criatura pura, e para isso terá contribuido o facto de os gatos terem muito cuidado com a sua higiene e limpeza, e o facto de Maomé ter convivido com vários. Duas lendas destacam-se na ilustração da importância dos gatos no Islão. Uma delas conta que um dos gatos de Maomé o terá salvo de uma serpente que estaria prestes a atacá-lo sem que este se tenha apercebido. Outra lenda conta que na hora de Maomé fazer a sua oração, o seu gato preferido, Muezza, estaria a dormir em cima de uma manga da sua túnica, e como Maomé o não quis acordar, cortou a manga da sua túnica e foi rezar.
Joseph Ratzinger, antes de ser o actual Papa Bento XVI, já vivia em Roma, como cardeal, presidindo uma congregação da Cúria Romana. Tinha dois gatos, um dos quais proveio das ruas de Roma. Costumava também de tratar e alimentar os que apareciam nos jardins onde trabalhava; e ainda hoje costuma cumprimentar alguns gatos das ruas perto do Vaticano. Mas a relação entre a Igreja Católica e os gatos nem sempre foi assim tão pacífica.
No início da cristianização da Europa, ainda no império romano, todas as outras religiões e cultos foram um alvo a abater. Se em 313, com o imperador Constantino, o Cristianismo passou a ser tolerado como mais uma religião, logo em 392, com o imperador Teodósio todas as outras religiões pagãs foram proibidas iniciando-se uma perseguição aos seus seguidores. Doravante a fé do império seria apenas a fé dos bispos de Roma e de Alexandria, conforme o seu édito. Em 388 uma sinagoga foi incendiada por cristãos e Teodósio mandou que se reconstruísse, mas o bispo de Milão (Santo Ambrósio) opôs-se, argumentando que queimar sinagogas era louvável e que o Imperador não tinha o direito de intervir em tais assuntos. O imperador acabou por ceder. Foi o início da submissão dos chefes de Estado ao poder da Igreja. Foi contudo com o Bispo de Roma, Leão I, que a Igreja começou a ser unificada e centralizada em Roma, ou seja a ideia de um sumo pontífice ou Papa começou a surgir a partir de 440, sendo o Bispo de Roma considerado o sucessor de S. Pedro exercendo a sua autoridade acima de os outros bispos. A relação entre os bispos de Roma e de Constantinopla nunca foi muito boa devido à separação do império romano em ocidente e oriente, e mais tarde com a fragmentação do ocidente em reinos germânicos. Contudo, o bispo de Roma, foi sempre respeitado por Roma ser a antiga capital do Império. Mas as diferenças como a subordinação do bispo de Constantinopla ao chefe de Estado do Império Bizantino, o apoio do Bispo de Roma ao Império Germano-Românico como o sucessor do Império Romano do Ocidente, entre outras razões, nomeadamente doutrinárias, culminaram no Cisma de 1054, quando ambos os bispos se excomungaram mutuamente.
As conversões dos povos pagãos (vikings, por exemplo) foram facilitadas pelas conversões dos seus chefes com o intuito de entrarem nas economias cristãs, mais prósperas, o facto de o próprio politeísmo já se encontrar em crise, e da tolerância do mesmo face a outros deuses. Já nos povos germânicos que ocuparam o antigo império romano, o facto da população ser romanizada e cristianizada fez com que os invasores se convertessem para melhor serem aceites. Missionários e cruzadas de reis cristãos com o intuito da conversão à força também ajudaram.
Chegados aqui, concluímos que os cultos pagãos não eram tolerados e que o Bispo de Roma tinha um enorme poder no Ocidente (já na Europa de Leste iria ser Constantinopla que acabaria por cristianizar os povos eslavos). Apesar disso, a Igreja não conseguiu acabar com certas práticas e rituais pagãos. Em vez de os eliminar, incorporou-os com outros nomes e fundamentos. No lugar dos principais templos pagãos construíram-se igrejas, e várias festas pagãs transformaram-se por exemplo no Natal, no dia de S. Valentim, no carnaval, na Páscoa (que em inglês e alemão ainda se chama de Easter e Ostern, respectivamente, em honra da deusa primaveril Eostre, ou Ostara), nas festas dos santos no Verão (S. António, S. João, etc.), e no dia de todos os Santos. Já os antigos deuses tornam-se demónios ou manifestações de Satanás, e os antigos sacerdotes e sacerdotisas das antigas religiões, relacionadas com cultos xamânicos, e que eram ao mesmo tempo curandeiros/as tornam-se bruxos/as, isto é, adoradores de Satanás. As mulheres tinham uma grande importância nesses cultos daí normalmente haver mais bruxas que bruxos, mas dependia do lugar. Freyja e os seus gatos eram agora maléficos e demoníacos (ainda para mais sendo um símbolo de sensualidade e erotismo), e certos símbolos da mitologia celta, que ainda persistiam, no continente europeu mas sobretudo nas ilhas britânicas, relacionados com práticas xamânicas e de curandeiros, como o caldeirão, e o facto de os gatos serem criaturas sagradas que faziam a ligação entre este mundo e o mundo espiritual, passaram a estar associadas ao Demónio. Claro, que por vezes, bastava haver uma viúva a viver sozinha, já com uma certa idade, e que ainda por cima falava com os seus gatos, para ser a responsável por todos os males da aldeia. O último julgamento e decapitação de uma bruxa na Europa foi na Suíça em 1782. As execuções formais eram feitas pelos Estados (fogueira, forca, prensagem, afogamento, esquartejamento, e decapitação), mas também havia as execuções informais, como a que houve no México em 1981 em que uma mulher acusada pelo seu marido de ser uma bruxa foi apedrejada até morrer, pelos seus vizinhos. As principais execuções foram feitas em França, Suíça e Alemanha, e sobretudo após a reforma protestante, tanto por católicos como por protestantes. O fenómeno da caça às bruxas é muitíssimo complexo, contudo, sabe-se que bruxas e gatos, sobretudo os negros eram encarados como seres malignos sendo estes considerados parentes daquelas, parentes demoníacos, enviados por Satanás, que assumiam a forma de um gato; entre outras razões, talvez por as bruxas falarem com os seus gatos. O gato passou a estar associado a heresias. Eram mortos com ou sem as suas bruxas. Eram emparedados vivos, crucificados, enforcados, esfolados vivos, atirados das torres de catedrais, ou simplesmente queimados; por vezes nas festas de Verão, onde punham vários gatos vivos em sacos e os atiravam para fogueiras. O número de gatos diminuiu seriamente na Europa, durante a Idade Média, o que fez aumentar o número de roedores, o que por sua vez contribuiu para a disseminação da peste bubónica. Ironicamente, culpou-se os gatos e as bruxas pela peste. Assim é bastante irónico o actual Papa ser um amante de gatos, depois de o Papa Gregório IX, no sec. XIII fundar a Inquisição para combater os hereges, incluindo os gatos, em especial os negros; e de no sec. XV, o Papa Inocêncio VIII através de uma nova bula, ter reafirmado a perseguição das bruxas e dos seus gatos que deveriam ser queimados juntos. Só com o Iluminismo se começou a olhar para os gatos de outra maneira. Porém, ainda hoje o gato negro dá azar…
Ainda assim, sempre houve quem admirasse a graciosidade desse animal, e há inúmeras histórias engraçadas, como a invenção de Isaac Newton, da portinhola, para o seu gato poder sair e entrar quando lhe apetecesse, ou do gato negro de Winston Churchill que estava presente no Conselho de Ministros, na sua cadeira, ao lado de Churchill, durante a II Grande Guerra (e que não deu azar).
Agora que se aproxima o Natal, convém referir que um gato não é um brinquedo, nem uma mercadoria (se bem que já existem gatos geneticamente modificados para não causarem alergia a quem a tem, sinal dos tempos…), nem uma criança (apesar de eles verem o dono como a sua mãe gata de 2 pernas, se viver com ele desde tenra idade), nem um deus, nem um demónio, um gato é um felino que mia, e que humaniza a vida nas actuais sociedades tecnológicas e maquinizadas.
De todos os símbolos mitológicos que se atribuíram a essa criatura fofa, é de realçar a da liberdade e independência atribuído pelos romanos. Quem contribuiu mais para a disseminação do gato na Europa foram os romanos, através das suas legiões. O gato, símbolo de independência e de insubmissão era frequentemente uma mascote das legiões romanas, que acompanhavam as mesmas, também com o intuito de proteger as provisões de alimentos nos acampamentos de roedores. Eram também, por vezes, representadas cabeças de gato nos seus escudos. E a deusa da Liberdade, Libertas, era representada muitas vezes como uma mulher com um gato a seus pés.
Nuno Miguel Cruz
01-12-2008
in Tinta Fresca, jornal de arte, cultura e cidadania
Antes de serem feitos estudos genéticos, pensava-se que a domesticação do gato teria ocorrido várias vezes em várias partes do mundo, mas hoje sabe-se que todos os gatos domésticos tiveram a sua origem numa única parte do mundo, no Crescente Fértil (entre os rios Nilo, Tigris e Eufrates). O gato bravo – felis silvestris (FS), subdivide-se em 5 subespécies: FS silvestris (na Europa); FS lybica (norte de África e Médio Oriente); FS cafra (sul de África); FS bieti (deserto da China); e FS ornata (Paquistão, nordeste da Índia, Mongólia e norte da china). O gato domesticado – FS catus, é descendente apenas do FS lybica, tendo, depois de domesticado, se cruzado com as outras subespécies.
Ao contrário dos outros animais que foram domesticados, o gato participou activamente na domesticação, foi ele que veio ter connosco. E essa associação começou com as primeiras civilizações. Estas surgiram com a agricultura, há cerca de 12 mil anos atrás no Médio Oriente, e mais tarde no Sudeste da Ásia, Índia e China e América Central há cerca de 8 mil anos, entre outros lugares. Não se conhecem as razões exactas do surgimento da agricultura, mas as alterações climáticas devem ter contribuído bastante porque surgiu em várias partes do mundo relativamente ao mesmo tempo. Sabe-se que antes da agricultura já existiam comunidades humanas que faziam pão, há cerca de 24 mil anos, por isso devem ter sido múltiplas as causas para o seu surgimento.
O armazenamento dos cereais atraiu inúmeros roedores, que por sua vez atraiu os gatos selvagens que com o tempo se acostumaram a alguns humanos e estes aos gatos, vivendo desde então lado a lado ou mesmo conjuntamente. Os gatos eram tolerados e até queridos, por controlarem o número de roedores, vivendo à vontade, livres de entrar e sair entre as comunidades humanas, não sendo propriedade de ninguém. A prova da associação mais antiga entre essas duas espécies data de há 9 500 anos na ilha de Chipre onde foram encontrados numa sepultura as ossadas de um humano e de um gato juntos. Acrescenta-se que na ilha de Chipre não havia gatos nativos. O estudo genético mostrou também que o FS catus provém de pelo menos 5 linhagens maternais do FS lybica, o que sugere a possibilidade de ter havido mais que uma domesticação, mas todas restringidas ao Crescente Fértil do Médio Oriente. Em termos arqueológicos as mais antigas provas dessa associação foram encontradas no Antigo Egipto há cerca de 6 mil anos atrás, e daqui foram levados para outras civilizações, que os levaram para o mundo inteiro.
Antes de os deuses terem morrido de riso ao ouvir um deles dizer que era o único, nas palavras de Nietzsche, antes de se abstrair a razão humana e se criar um deus único, os antigos olharam para os outros animais e abstraíram deles certas qualidades, criando seres sobrenaturais ou divinos; tinham o culto da natureza. O principal deus egípcio, simbolizando o poder do sol era Ré, e devido à sua importância era associado a outros deuses, como Amon, ficando Amon-Rá. Segundo a mitologia Egípcia, durante a noite, Ré ficava vulnerável a ser atacado por uma Serpente. Os gatos durante a noite guardavam parte da luz do sol nos seus olhos e protegiam Ré da Grande Serpente. A grande utilidade dos gatos mais a sua beleza e nobreza de carácter deram origem a muitas entidades divinas. Assim, os gatos não eram considerados deuses, eram antes considerados protegidos pelos deuses, ou até, suas manifestações.
A deusa Bastet, representada por uma mulher com cabeça de gata, era a protectora dos gatos e inimiga das serpentes, deusa da alegria, da agilidade e da saúde, do amor maternal e da fertilidade, guardiã do lar e das crianças. Quando enraivecida transformava-se em Sekhmet, mulher com cabeça de leão, deusa da guerra e das doenças, transformando-se de novo na dócil Bastet depois de se acalmar. Mais tarde é representada também na forma de uma gata e passa a estar associada não só ao sol, mas também à lua. No período nocturno passa a estar associada sobretudo à fertilidade, à sexualidade e sensualidade. Bastet passa a Pasht, e daqui veio pussy, que em inglês significa gato, entre outras coisas.
Utchat era o olho de Ré, que é a origem da palavra gato, que vem do latim catus. Utchat, o olho de Ré ou de Horus era um símbolo protector muito importante, presente em muitos sítios desde casas, barcos a amuletos fúnebres. Olho de Ré, o olho divino que vê tudo, ainda hoje está presente na Maçonaria e no selo oficial dos EUA. Com o tempo este olho de Ré passa a estar associado a Bastet e ao olho-de-gato. Esse olho que reflecte a luz durante a noite e se assemelha a uma lua com a sua pupila umas vezes aberta, outras vezes fechada.
Do Egipto os gatos foram levados para outras civilizações, acabando por se encontrarem praticamente em todo o mundo. Devido à sua beleza, e à sua utilidade como caçadores de animais que facilmente se transformariam em pragas, os gatos foram de imediato aceites como animais de companhia e entraram para as respectivas mitologias. Na China davam boa sorte, em especial na área financeira, e espantavam os espíritos malignos. Tinham também um deus relacionado com a agricultura que assumia a sua forma. No Sudeste Asiático e Índia, influenciados pelo Budismo, os gatos eram um símbolo de sabedoria, prudência, auto-disciplina e meditação. Consta uma lenda ambígua, que relata que no momento da morte de Buda, “o gato” em vez de se lamentar, continuou indiferente a comer um rato; sugerindo que foi o único animal a compreender realmente a mensagem de Buda. No Japão, dizia-se que quando um gato morria, este transformava-se num espírito evoluído.
Na Europa Antiga, à semelhança de todas as outras civilizações, o gato foi bem acolhido, não só devido à sua utilidade (diz um provérbio – aquele que não alimentar o gato vai ter de alimentar os ratos) mas também devido à sua natureza que deu origem também a muitas entidades divinas, e muitas, muitas lendas.
Nos povos nórdicos, não só os vikings, mas em geral todos os povos germânicos, existia uma deusa com o nome de Freyja (que mais tarde deu Friday, Freitag, Fredag..., o dia de Freyja) que era simbolizada por uma mulher loira a conduzir uma carruagem puxada por dois gatos – Bygul (ouro de abelha – mel) e Trjegul (ouro de árvore – âmbar). Era a deusa do amor (tinham o costume de celebrar os casamentos às sextas-feiras), da beleza, da sexualidade, da fertilidade e do bem-estar, e também do nascimento e da morte. Era quem conduzia os heróis mortos em batalha, dando metade das almas a Odin, rei dos deuses (que o iriam ajudar a combater gigantes e monstros), ficando com a outra metade no seu domínio onde eram aquecidos e bem tratados, e onde mais tarde se juntariam às suas amantes ou esposas. Os gatos eram os animais preferidos da deusa, simbolizando carinho, sensualidade e fertilidade. Freyja, mais tarde, irá influenciar em muito, a visão que se tinha do gato na Idade Média cristianizada, como reacção, e de certa forma ainda a de hoje.
No Islão o gato sempre foi visto como uma criatura pura, e para isso terá contribuido o facto de os gatos terem muito cuidado com a sua higiene e limpeza, e o facto de Maomé ter convivido com vários. Duas lendas destacam-se na ilustração da importância dos gatos no Islão. Uma delas conta que um dos gatos de Maomé o terá salvo de uma serpente que estaria prestes a atacá-lo sem que este se tenha apercebido. Outra lenda conta que na hora de Maomé fazer a sua oração, o seu gato preferido, Muezza, estaria a dormir em cima de uma manga da sua túnica, e como Maomé o não quis acordar, cortou a manga da sua túnica e foi rezar.
Joseph Ratzinger, antes de ser o actual Papa Bento XVI, já vivia em Roma, como cardeal, presidindo uma congregação da Cúria Romana. Tinha dois gatos, um dos quais proveio das ruas de Roma. Costumava também de tratar e alimentar os que apareciam nos jardins onde trabalhava; e ainda hoje costuma cumprimentar alguns gatos das ruas perto do Vaticano. Mas a relação entre a Igreja Católica e os gatos nem sempre foi assim tão pacífica.
No início da cristianização da Europa, ainda no império romano, todas as outras religiões e cultos foram um alvo a abater. Se em 313, com o imperador Constantino, o Cristianismo passou a ser tolerado como mais uma religião, logo em 392, com o imperador Teodósio todas as outras religiões pagãs foram proibidas iniciando-se uma perseguição aos seus seguidores. Doravante a fé do império seria apenas a fé dos bispos de Roma e de Alexandria, conforme o seu édito. Em 388 uma sinagoga foi incendiada por cristãos e Teodósio mandou que se reconstruísse, mas o bispo de Milão (Santo Ambrósio) opôs-se, argumentando que queimar sinagogas era louvável e que o Imperador não tinha o direito de intervir em tais assuntos. O imperador acabou por ceder. Foi o início da submissão dos chefes de Estado ao poder da Igreja. Foi contudo com o Bispo de Roma, Leão I, que a Igreja começou a ser unificada e centralizada em Roma, ou seja a ideia de um sumo pontífice ou Papa começou a surgir a partir de 440, sendo o Bispo de Roma considerado o sucessor de S. Pedro exercendo a sua autoridade acima de os outros bispos. A relação entre os bispos de Roma e de Constantinopla nunca foi muito boa devido à separação do império romano em ocidente e oriente, e mais tarde com a fragmentação do ocidente em reinos germânicos. Contudo, o bispo de Roma, foi sempre respeitado por Roma ser a antiga capital do Império. Mas as diferenças como a subordinação do bispo de Constantinopla ao chefe de Estado do Império Bizantino, o apoio do Bispo de Roma ao Império Germano-Românico como o sucessor do Império Romano do Ocidente, entre outras razões, nomeadamente doutrinárias, culminaram no Cisma de 1054, quando ambos os bispos se excomungaram mutuamente.
As conversões dos povos pagãos (vikings, por exemplo) foram facilitadas pelas conversões dos seus chefes com o intuito de entrarem nas economias cristãs, mais prósperas, o facto de o próprio politeísmo já se encontrar em crise, e da tolerância do mesmo face a outros deuses. Já nos povos germânicos que ocuparam o antigo império romano, o facto da população ser romanizada e cristianizada fez com que os invasores se convertessem para melhor serem aceites. Missionários e cruzadas de reis cristãos com o intuito da conversão à força também ajudaram.
Chegados aqui, concluímos que os cultos pagãos não eram tolerados e que o Bispo de Roma tinha um enorme poder no Ocidente (já na Europa de Leste iria ser Constantinopla que acabaria por cristianizar os povos eslavos). Apesar disso, a Igreja não conseguiu acabar com certas práticas e rituais pagãos. Em vez de os eliminar, incorporou-os com outros nomes e fundamentos. No lugar dos principais templos pagãos construíram-se igrejas, e várias festas pagãs transformaram-se por exemplo no Natal, no dia de S. Valentim, no carnaval, na Páscoa (que em inglês e alemão ainda se chama de Easter e Ostern, respectivamente, em honra da deusa primaveril Eostre, ou Ostara), nas festas dos santos no Verão (S. António, S. João, etc.), e no dia de todos os Santos. Já os antigos deuses tornam-se demónios ou manifestações de Satanás, e os antigos sacerdotes e sacerdotisas das antigas religiões, relacionadas com cultos xamânicos, e que eram ao mesmo tempo curandeiros/as tornam-se bruxos/as, isto é, adoradores de Satanás. As mulheres tinham uma grande importância nesses cultos daí normalmente haver mais bruxas que bruxos, mas dependia do lugar. Freyja e os seus gatos eram agora maléficos e demoníacos (ainda para mais sendo um símbolo de sensualidade e erotismo), e certos símbolos da mitologia celta, que ainda persistiam, no continente europeu mas sobretudo nas ilhas britânicas, relacionados com práticas xamânicas e de curandeiros, como o caldeirão, e o facto de os gatos serem criaturas sagradas que faziam a ligação entre este mundo e o mundo espiritual, passaram a estar associadas ao Demónio. Claro, que por vezes, bastava haver uma viúva a viver sozinha, já com uma certa idade, e que ainda por cima falava com os seus gatos, para ser a responsável por todos os males da aldeia. O último julgamento e decapitação de uma bruxa na Europa foi na Suíça em 1782. As execuções formais eram feitas pelos Estados (fogueira, forca, prensagem, afogamento, esquartejamento, e decapitação), mas também havia as execuções informais, como a que houve no México em 1981 em que uma mulher acusada pelo seu marido de ser uma bruxa foi apedrejada até morrer, pelos seus vizinhos. As principais execuções foram feitas em França, Suíça e Alemanha, e sobretudo após a reforma protestante, tanto por católicos como por protestantes. O fenómeno da caça às bruxas é muitíssimo complexo, contudo, sabe-se que bruxas e gatos, sobretudo os negros eram encarados como seres malignos sendo estes considerados parentes daquelas, parentes demoníacos, enviados por Satanás, que assumiam a forma de um gato; entre outras razões, talvez por as bruxas falarem com os seus gatos. O gato passou a estar associado a heresias. Eram mortos com ou sem as suas bruxas. Eram emparedados vivos, crucificados, enforcados, esfolados vivos, atirados das torres de catedrais, ou simplesmente queimados; por vezes nas festas de Verão, onde punham vários gatos vivos em sacos e os atiravam para fogueiras. O número de gatos diminuiu seriamente na Europa, durante a Idade Média, o que fez aumentar o número de roedores, o que por sua vez contribuiu para a disseminação da peste bubónica. Ironicamente, culpou-se os gatos e as bruxas pela peste. Assim é bastante irónico o actual Papa ser um amante de gatos, depois de o Papa Gregório IX, no sec. XIII fundar a Inquisição para combater os hereges, incluindo os gatos, em especial os negros; e de no sec. XV, o Papa Inocêncio VIII através de uma nova bula, ter reafirmado a perseguição das bruxas e dos seus gatos que deveriam ser queimados juntos. Só com o Iluminismo se começou a olhar para os gatos de outra maneira. Porém, ainda hoje o gato negro dá azar…
Ainda assim, sempre houve quem admirasse a graciosidade desse animal, e há inúmeras histórias engraçadas, como a invenção de Isaac Newton, da portinhola, para o seu gato poder sair e entrar quando lhe apetecesse, ou do gato negro de Winston Churchill que estava presente no Conselho de Ministros, na sua cadeira, ao lado de Churchill, durante a II Grande Guerra (e que não deu azar).
Agora que se aproxima o Natal, convém referir que um gato não é um brinquedo, nem uma mercadoria (se bem que já existem gatos geneticamente modificados para não causarem alergia a quem a tem, sinal dos tempos…), nem uma criança (apesar de eles verem o dono como a sua mãe gata de 2 pernas, se viver com ele desde tenra idade), nem um deus, nem um demónio, um gato é um felino que mia, e que humaniza a vida nas actuais sociedades tecnológicas e maquinizadas.
De todos os símbolos mitológicos que se atribuíram a essa criatura fofa, é de realçar a da liberdade e independência atribuído pelos romanos. Quem contribuiu mais para a disseminação do gato na Europa foram os romanos, através das suas legiões. O gato, símbolo de independência e de insubmissão era frequentemente uma mascote das legiões romanas, que acompanhavam as mesmas, também com o intuito de proteger as provisões de alimentos nos acampamentos de roedores. Eram também, por vezes, representadas cabeças de gato nos seus escudos. E a deusa da Liberdade, Libertas, era representada muitas vezes como uma mulher com um gato a seus pés.
Nuno Miguel Cruz
01-12-2008
in Tinta Fresca, jornal de arte, cultura e cidadania
domingo, dezembro 21, 2008
quinta-feira, novembro 27, 2008
terça-feira, novembro 11, 2008
segunda-feira, novembro 03, 2008
terça-feira, setembro 23, 2008
quinta-feira, setembro 11, 2008
terça-feira, setembro 09, 2008
quinta-feira, agosto 28, 2008
tita
a tita morreu
roubada por motivos fúteis e levada para o alentejo, não resistiu a 3 meses e meio de calor, sede, fome e abandono
quando fizer o meu luto escreverei passo por passo o que foram os dias desde que ma levaram, na terça-feira dia 6 de maio, aqui da aldeia onde moro
de volta ao meu cantinho alternativo, os degraus da laura
a ganhar espaço no coração agora que a minha maluquinha é uma luzinha invisível que me espera perto dos meus,
como me contou o zé antónio acerca da alma dos nossos animais de estimação
temos uma canção para ti, tita bonita
quarta-feira, julho 23, 2008
quinta-feira, junho 26, 2008
segunda-feira, junho 23, 2008
Noite de S.João: Danças e saltos ardentes
Queime no fogo as suas negatividades. Receba o orvalho
desta noite sacra; pela alba ou aurora ida às fontes
***
A grande luta moderna pela melhoria das sociedades
e a sobrevivência do planeta
é feita pela transformação individual e pela acção de pequenos grupos
que se desprendem das malhas consumistas e egoístas
e lucidamente iniciam o caminho verdadeiro da plena atenção,
simplicidade, partilha, amor e unidade.
in Borda d'Água
desta noite sacra; pela alba ou aurora ida às fontes
***
A grande luta moderna pela melhoria das sociedades
e a sobrevivência do planeta
é feita pela transformação individual e pela acção de pequenos grupos
que se desprendem das malhas consumistas e egoístas
e lucidamente iniciam o caminho verdadeiro da plena atenção,
simplicidade, partilha, amor e unidade.
in Borda d'Água
sexta-feira, maio 09, 2008
quarta-feira, abril 23, 2008
mes mains volent pour se rejoindre
Comme des colombes en désaccord mes mains volent entre les secrets
pour se rejoindre
dans la saison où les oiseaux chantent l'amour d'être entourés d'eux mêmes.
Natália Correia (56/57)
pour se rejoindre
dans la saison où les oiseaux chantent l'amour d'être entourés d'eux mêmes.
Natália Correia (56/57)
sábado, abril 19, 2008
domingo, dezembro 02, 2007
sábado, setembro 01, 2007
Parabéns, António, antes que anoiteça
Antes que anoiteça
Por razões que não vêm ao caso, as últimas semanas, difíceis para mim, têm-me obrigado a pensar no passado e no presente e a esquecer o futuro. Sobretudo o passado: tornei a encontrar o cheiro e o eco dos hospitais, essa atmosfera de feltro branco, onde as enfermeiras deslizam como cisnes, que nos tempos de interno me exaltava, o silêncio de borracha, brilhos metálicos, pessoas que falam baixinho como nas igrejas, a solidadriedade na tristeza das salas de espera, corredores intermináveis, o ritual de solenidade apavorante a que assisto com um sorriso trémulo a servir de bengala, uma coragem postiça a mal esconder o medo. Sobretudo no passado porque o futuro se estreita, e digo sobretudo o passado visto que o presente se tornou passado também, recordações que julgava perdidas e regressam sem que se dê por isso, os domingos de feira em Nelas, os gritos dos leitões
(lembro-me tanto dos gritos dos leitões agora)
um anel com o emblema do Benfica que aos cinco anos eu achava lindo e os meus pais horrível, que aos cinquenta anos continuo a achar lindo apesar de achar horrível também, e julgo ser altura de começar a usá-lo uma vez que não me sobra assim tanto tempo para grandes prazeres. Quero o anel com o emblema do Benfica, quero minha avó viva, quero a casa da Beira, tudo aquilo que deixei fugir e me faz falta, quero a Gija a coçar-me as costas antes de me deitar, quero o pinhal do Zé Rebelo, quero jogar pingue-pongue com o meu irmão João, quero ler Júlio Verne, quero ir à Feira Popular andar no carrocel do oito, quero ver o Costa Pereira defender um penalti do Didi, quero trouxas de ovos, quero pastéis de bacalhau com arroz de tomate, quero ir para a biblioteca do liceu excitar-me às escondidas com a «Ruiva» de Fialho de Almeida, quero tornar a apaixonar-me pela mulher do faraó nos «Dez Mandamentos» que vi aos doze anos e a quem fui intransigentemente fiel um verão inteiro, quero a minha mãe, quero o meu irmão Pedro pequeno, quero ir comprar papel de trinta e cinco linhas à mercearia para escrever versos contadas pelos dedos, quero voltar a jogar hóquei em patins, quero ser o mais alto da turma, quero abafar berlindes
olho de boi, olho de vaca, contramundo e papa
quero o Frias a contar filmes na escola do senhor André, a falar do Rapaz, da Rapariga e do Amigo do Rapaz, filmes que nunca vi a não ser através das descrições do Frias
(Manuel Maria Camarate Frias o que é feito de ti?)
e as descrições do Frias eram muito melhores do que os filmes, o Frias imitava a música de fundo, o barulho dos cavalos, os tiros, a pancadaria no «saloon», imitava de tal forma que a gente era com se estivesse a ver, o Frias, o Norberto Noroeste Cavaleiro, o homem que achou que eu lhe estava a mexer no automóvel e se desfez num berro
--Trata-me por senhor doutor meu camelo
a primeira vez que uma pessoa crescida me chamou nomes e eu com vontade de responder que o meu pai também era doutor, que ao entrar no balneário do Futebol Benfica para me equipar o Ferro-o-Bico explicou aos outros
-- O pai do ruço é doutor
e houve à minha roda uma nudez respeitosa, o pai do ruço é doutor, quero voltar a apanhar um táxi à porta de casa e o chofer perguntar
-- É aqui que mora um rapaz que joga hóquei chamado João?
e quero tornar a espantar-me por ele tratar assim o pai do ruço, quero partir um braço e ter gesso no braço ou, melhor ainda, uma perna para andar de canadianas e assombrar as meninas da minha idade, um miúdo de canadianas
achava eu, acho eu
não há rapariga que não deseje namorar com ele e além disso os carros param para a gente atravessar a rua, quero que o meu avô me desenhe um cavalo, eu monte no cavalo e me vá embora daqui, quero dar pulos na cama, quero comer percebes, quero fumar às escondidas, quero ler o «Mundo de Aventuras», quero ser Cisco Kid e Mozart ao mesmo tempo, quero gelados do Santini, quero uma lanterna de pilhas no Natal, quero guarda-chuvas de chocolate, quero que a minha tia Gogó me dê de almoçar
-- Abre a boca Toino
quero um pratinho de tremoços, quero ser Sandokan Soberano da Malásia, quero usar calças compridas, quero descer dos eléctricos em andamento, quero ser revisor da Carris, quero tocar todas as cornetas de plástico do mundo, quero uma caixa de sapatos cheia de bichos de seda, quero o boneco da bola, quero que não haja hospitais, quero que não haja doentes, quero que não haja operações, quero ter tempo para ganhar coragem e dizer aos meus pais que gosto muito deles
( não sei se consigo)
dizer aos meus pais que gosto muito deles antes que anoiteça senhores, antes que anoiteça para sempre.
António Lobo Antunes
in Crónicas do Público (1996)
Por razões que não vêm ao caso, as últimas semanas, difíceis para mim, têm-me obrigado a pensar no passado e no presente e a esquecer o futuro. Sobretudo o passado: tornei a encontrar o cheiro e o eco dos hospitais, essa atmosfera de feltro branco, onde as enfermeiras deslizam como cisnes, que nos tempos de interno me exaltava, o silêncio de borracha, brilhos metálicos, pessoas que falam baixinho como nas igrejas, a solidadriedade na tristeza das salas de espera, corredores intermináveis, o ritual de solenidade apavorante a que assisto com um sorriso trémulo a servir de bengala, uma coragem postiça a mal esconder o medo. Sobretudo no passado porque o futuro se estreita, e digo sobretudo o passado visto que o presente se tornou passado também, recordações que julgava perdidas e regressam sem que se dê por isso, os domingos de feira em Nelas, os gritos dos leitões
(lembro-me tanto dos gritos dos leitões agora)
um anel com o emblema do Benfica que aos cinco anos eu achava lindo e os meus pais horrível, que aos cinquenta anos continuo a achar lindo apesar de achar horrível também, e julgo ser altura de começar a usá-lo uma vez que não me sobra assim tanto tempo para grandes prazeres. Quero o anel com o emblema do Benfica, quero minha avó viva, quero a casa da Beira, tudo aquilo que deixei fugir e me faz falta, quero a Gija a coçar-me as costas antes de me deitar, quero o pinhal do Zé Rebelo, quero jogar pingue-pongue com o meu irmão João, quero ler Júlio Verne, quero ir à Feira Popular andar no carrocel do oito, quero ver o Costa Pereira defender um penalti do Didi, quero trouxas de ovos, quero pastéis de bacalhau com arroz de tomate, quero ir para a biblioteca do liceu excitar-me às escondidas com a «Ruiva» de Fialho de Almeida, quero tornar a apaixonar-me pela mulher do faraó nos «Dez Mandamentos» que vi aos doze anos e a quem fui intransigentemente fiel um verão inteiro, quero a minha mãe, quero o meu irmão Pedro pequeno, quero ir comprar papel de trinta e cinco linhas à mercearia para escrever versos contadas pelos dedos, quero voltar a jogar hóquei em patins, quero ser o mais alto da turma, quero abafar berlindes
olho de boi, olho de vaca, contramundo e papa
quero o Frias a contar filmes na escola do senhor André, a falar do Rapaz, da Rapariga e do Amigo do Rapaz, filmes que nunca vi a não ser através das descrições do Frias
(Manuel Maria Camarate Frias o que é feito de ti?)
e as descrições do Frias eram muito melhores do que os filmes, o Frias imitava a música de fundo, o barulho dos cavalos, os tiros, a pancadaria no «saloon», imitava de tal forma que a gente era com se estivesse a ver, o Frias, o Norberto Noroeste Cavaleiro, o homem que achou que eu lhe estava a mexer no automóvel e se desfez num berro
--Trata-me por senhor doutor meu camelo
a primeira vez que uma pessoa crescida me chamou nomes e eu com vontade de responder que o meu pai também era doutor, que ao entrar no balneário do Futebol Benfica para me equipar o Ferro-o-Bico explicou aos outros
-- O pai do ruço é doutor
e houve à minha roda uma nudez respeitosa, o pai do ruço é doutor, quero voltar a apanhar um táxi à porta de casa e o chofer perguntar
-- É aqui que mora um rapaz que joga hóquei chamado João?
e quero tornar a espantar-me por ele tratar assim o pai do ruço, quero partir um braço e ter gesso no braço ou, melhor ainda, uma perna para andar de canadianas e assombrar as meninas da minha idade, um miúdo de canadianas
achava eu, acho eu
não há rapariga que não deseje namorar com ele e além disso os carros param para a gente atravessar a rua, quero que o meu avô me desenhe um cavalo, eu monte no cavalo e me vá embora daqui, quero dar pulos na cama, quero comer percebes, quero fumar às escondidas, quero ler o «Mundo de Aventuras», quero ser Cisco Kid e Mozart ao mesmo tempo, quero gelados do Santini, quero uma lanterna de pilhas no Natal, quero guarda-chuvas de chocolate, quero que a minha tia Gogó me dê de almoçar
-- Abre a boca Toino
quero um pratinho de tremoços, quero ser Sandokan Soberano da Malásia, quero usar calças compridas, quero descer dos eléctricos em andamento, quero ser revisor da Carris, quero tocar todas as cornetas de plástico do mundo, quero uma caixa de sapatos cheia de bichos de seda, quero o boneco da bola, quero que não haja hospitais, quero que não haja doentes, quero que não haja operações, quero ter tempo para ganhar coragem e dizer aos meus pais que gosto muito deles
( não sei se consigo)
dizer aos meus pais que gosto muito deles antes que anoiteça senhores, antes que anoiteça para sempre.
António Lobo Antunes
in Crónicas do Público (1996)
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