quarta-feira, janeiro 07, 2009

A deusa da Liberdade tem um gato a seus pés

Miu e mau eram os nomes que no Antigo Egipto se davam aos gatos. Mas a palavra gato (e cat, gatto, chat, Katze, etc.) vem de uma outra palavra do Antigo Egipto – utchat, mas já lá iremos.

Antes de serem feitos estudos genéticos, pensava-se que a domesticação do gato teria ocorrido várias vezes em várias partes do mundo, mas hoje sabe-se que todos os gatos domésticos tiveram a sua origem numa única parte do mundo, no Crescente Fértil (entre os rios Nilo, Tigris e Eufrates). O gato bravo – felis silvestris (FS), subdivide-se em 5 subespécies: FS silvestris (na Europa); FS lybica (norte de África e Médio Oriente); FS cafra (sul de África); FS bieti (deserto da China); e FS ornata (Paquistão, nordeste da Índia, Mongólia e norte da china). O gato domesticado – FS catus, é descendente apenas do FS lybica, tendo, depois de domesticado, se cruzado com as outras subespécies.

Ao contrário dos outros animais que foram domesticados, o gato participou activamente na domesticação, foi ele que veio ter connosco. E essa associação começou com as primeiras civilizações. Estas surgiram com a agricultura, há cerca de 12 mil anos atrás no Médio Oriente, e mais tarde no Sudeste da Ásia, Índia e China e América Central há cerca de 8 mil anos, entre outros lugares. Não se conhecem as razões exactas do surgimento da agricultura, mas as alterações climáticas devem ter contribuído bastante porque surgiu em várias partes do mundo relativamente ao mesmo tempo. Sabe-se que antes da agricultura já existiam comunidades humanas que faziam pão, há cerca de 24 mil anos, por isso devem ter sido múltiplas as causas para o seu surgimento.

O armazenamento dos cereais atraiu inúmeros roedores, que por sua vez atraiu os gatos selvagens que com o tempo se acostumaram a alguns humanos e estes aos gatos, vivendo desde então lado a lado ou mesmo conjuntamente. Os gatos eram tolerados e até queridos, por controlarem o número de roedores, vivendo à vontade, livres de entrar e sair entre as comunidades humanas, não sendo propriedade de ninguém. A prova da associação mais antiga entre essas duas espécies data de há 9 500 anos na ilha de Chipre onde foram encontrados numa sepultura as ossadas de um humano e de um gato juntos. Acrescenta-se que na ilha de Chipre não havia gatos nativos. O estudo genético mostrou também que o FS catus provém de pelo menos 5 linhagens maternais do FS lybica, o que sugere a possibilidade de ter havido mais que uma domesticação, mas todas restringidas ao Crescente Fértil do Médio Oriente. Em termos arqueológicos as mais antigas provas dessa associação foram encontradas no Antigo Egipto há cerca de 6 mil anos atrás, e daqui foram levados para outras civilizações, que os levaram para o mundo inteiro.

Antes de os deuses terem morrido de riso ao ouvir um deles dizer que era o único, nas palavras de Nietzsche, antes de se abstrair a razão humana e se criar um deus único, os antigos olharam para os outros animais e abstraíram deles certas qualidades, criando seres sobrenaturais ou divinos; tinham o culto da natureza. O principal deus egípcio, simbolizando o poder do sol era Ré, e devido à sua importância era associado a outros deuses, como Amon, ficando Amon-Rá. Segundo a mitologia Egípcia, durante a noite, Ré ficava vulnerável a ser atacado por uma Serpente. Os gatos durante a noite guardavam parte da luz do sol nos seus olhos e protegiam Ré da Grande Serpente. A grande utilidade dos gatos mais a sua beleza e nobreza de carácter deram origem a muitas entidades divinas. Assim, os gatos não eram considerados deuses, eram antes considerados protegidos pelos deuses, ou até, suas manifestações.

A deusa Bastet, representada por uma mulher com cabeça de gata, era a protectora dos gatos e inimiga das serpentes, deusa da alegria, da agilidade e da saúde, do amor maternal e da fertilidade, guardiã do lar e das crianças. Quando enraivecida transformava-se em Sekhmet, mulher com cabeça de leão, deusa da guerra e das doenças, transformando-se de novo na dócil Bastet depois de se acalmar. Mais tarde é representada também na forma de uma gata e passa a estar associada não só ao sol, mas também à lua. No período nocturno passa a estar associada sobretudo à fertilidade, à sexualidade e sensualidade. Bastet passa a Pasht, e daqui veio pussy, que em inglês significa gato, entre outras coisas.

Utchat era o olho de Ré, que é a origem da palavra gato, que vem do latim catus. Utchat, o olho de Ré ou de Horus era um símbolo protector muito importante, presente em muitos sítios desde casas, barcos a amuletos fúnebres. Olho de Ré, o olho divino que vê tudo, ainda hoje está presente na Maçonaria e no selo oficial dos EUA. Com o tempo este olho de Ré passa a estar associado a Bastet e ao olho-de-gato. Esse olho que reflecte a luz durante a noite e se assemelha a uma lua com a sua pupila umas vezes aberta, outras vezes fechada.

Do Egipto os gatos foram levados para outras civilizações, acabando por se encontrarem praticamente em todo o mundo. Devido à sua beleza, e à sua utilidade como caçadores de animais que facilmente se transformariam em pragas, os gatos foram de imediato aceites como animais de companhia e entraram para as respectivas mitologias. Na China davam boa sorte, em especial na área financeira, e espantavam os espíritos malignos. Tinham também um deus relacionado com a agricultura que assumia a sua forma. No Sudeste Asiático e Índia, influenciados pelo Budismo, os gatos eram um símbolo de sabedoria, prudência, auto-disciplina e meditação. Consta uma lenda ambígua, que relata que no momento da morte de Buda, “o gato” em vez de se lamentar, continuou indiferente a comer um rato; sugerindo que foi o único animal a compreender realmente a mensagem de Buda. No Japão, dizia-se que quando um gato morria, este transformava-se num espírito evoluído.

Na Europa Antiga, à semelhança de todas as outras civilizações, o gato foi bem acolhido, não só devido à sua utilidade (diz um provérbio – aquele que não alimentar o gato vai ter de alimentar os ratos) mas também devido à sua natureza que deu origem também a muitas entidades divinas, e muitas, muitas lendas.

Nos povos nórdicos, não só os vikings, mas em geral todos os povos germânicos, existia uma deusa com o nome de Freyja (que mais tarde deu Friday, Freitag, Fredag..., o dia de Freyja) que era simbolizada por uma mulher loira a conduzir uma carruagem puxada por dois gatos – Bygul (ouro de abelha – mel) e Trjegul (ouro de árvore – âmbar). Era a deusa do amor (tinham o costume de celebrar os casamentos às sextas-feiras), da beleza, da sexualidade, da fertilidade e do bem-estar, e também do nascimento e da morte. Era quem conduzia os heróis mortos em batalha, dando metade das almas a Odin, rei dos deuses (que o iriam ajudar a combater gigantes e monstros), ficando com a outra metade no seu domínio onde eram aquecidos e bem tratados, e onde mais tarde se juntariam às suas amantes ou esposas. Os gatos eram os animais preferidos da deusa, simbolizando carinho, sensualidade e fertilidade. Freyja, mais tarde, irá influenciar em muito, a visão que se tinha do gato na Idade Média cristianizada, como reacção, e de certa forma ainda a de hoje.

No Islão o gato sempre foi visto como uma criatura pura, e para isso terá contribuido o facto de os gatos terem muito cuidado com a sua higiene e limpeza, e o facto de Maomé ter convivido com vários. Duas lendas destacam-se na ilustração da importância dos gatos no Islão. Uma delas conta que um dos gatos de Maomé o terá salvo de uma serpente que estaria prestes a atacá-lo sem que este se tenha apercebido. Outra lenda conta que na hora de Maomé fazer a sua oração, o seu gato preferido, Muezza, estaria a dormir em cima de uma manga da sua túnica, e como Maomé o não quis acordar, cortou a manga da sua túnica e foi rezar.

Joseph Ratzinger, antes de ser o actual Papa Bento XVI, já vivia em Roma, como cardeal, presidindo uma congregação da Cúria Romana. Tinha dois gatos, um dos quais proveio das ruas de Roma. Costumava também de tratar e alimentar os que apareciam nos jardins onde trabalhava; e ainda hoje costuma cumprimentar alguns gatos das ruas perto do Vaticano. Mas a relação entre a Igreja Católica e os gatos nem sempre foi assim tão pacífica.

No início da cristianização da Europa, ainda no império romano, todas as outras religiões e cultos foram um alvo a abater. Se em 313, com o imperador Constantino, o Cristianismo passou a ser tolerado como mais uma religião, logo em 392, com o imperador Teodósio todas as outras religiões pagãs foram proibidas iniciando-se uma perseguição aos seus seguidores. Doravante a fé do império seria apenas a fé dos bispos de Roma e de Alexandria, conforme o seu édito. Em 388 uma sinagoga foi incendiada por cristãos e Teodósio mandou que se reconstruísse, mas o bispo de Milão (Santo Ambrósio) opôs-se, argumentando que queimar sinagogas era louvável e que o Imperador não tinha o direito de intervir em tais assuntos. O imperador acabou por ceder. Foi o início da submissão dos chefes de Estado ao poder da Igreja. Foi contudo com o Bispo de Roma, Leão I, que a Igreja começou a ser unificada e centralizada em Roma, ou seja a ideia de um sumo pontífice ou Papa começou a surgir a partir de 440, sendo o Bispo de Roma considerado o sucessor de S. Pedro exercendo a sua autoridade acima de os outros bispos. A relação entre os bispos de Roma e de Constantinopla nunca foi muito boa devido à separação do império romano em ocidente e oriente, e mais tarde com a fragmentação do ocidente em reinos germânicos. Contudo, o bispo de Roma, foi sempre respeitado por Roma ser a antiga capital do Império. Mas as diferenças como a subordinação do bispo de Constantinopla ao chefe de Estado do Império Bizantino, o apoio do Bispo de Roma ao Império Germano-Românico como o sucessor do Império Romano do Ocidente, entre outras razões, nomeadamente doutrinárias, culminaram no Cisma de 1054, quando ambos os bispos se excomungaram mutuamente.

As conversões dos povos pagãos (vikings, por exemplo) foram facilitadas pelas conversões dos seus chefes com o intuito de entrarem nas economias cristãs, mais prósperas, o facto de o próprio politeísmo já se encontrar em crise, e da tolerância do mesmo face a outros deuses. Já nos povos germânicos que ocuparam o antigo império romano, o facto da população ser romanizada e cristianizada fez com que os invasores se convertessem para melhor serem aceites. Missionários e cruzadas de reis cristãos com o intuito da conversão à força também ajudaram.

Chegados aqui, concluímos que os cultos pagãos não eram tolerados e que o Bispo de Roma tinha um enorme poder no Ocidente (já na Europa de Leste iria ser Constantinopla que acabaria por cristianizar os povos eslavos). Apesar disso, a Igreja não conseguiu acabar com certas práticas e rituais pagãos. Em vez de os eliminar, incorporou-os com outros nomes e fundamentos. No lugar dos principais templos pagãos construíram-se igrejas, e várias festas pagãs transformaram-se por exemplo no Natal, no dia de S. Valentim, no carnaval, na Páscoa (que em inglês e alemão ainda se chama de Easter e Ostern, respectivamente, em honra da deusa primaveril Eostre, ou Ostara), nas festas dos santos no Verão (S. António, S. João, etc.), e no dia de todos os Santos. Já os antigos deuses tornam-se demónios ou manifestações de Satanás, e os antigos sacerdotes e sacerdotisas das antigas religiões, relacionadas com cultos xamânicos, e que eram ao mesmo tempo curandeiros/as tornam-se bruxos/as, isto é, adoradores de Satanás. As mulheres tinham uma grande importância nesses cultos daí normalmente haver mais bruxas que bruxos, mas dependia do lugar. Freyja e os seus gatos eram agora maléficos e demoníacos (ainda para mais sendo um símbolo de sensualidade e erotismo), e certos símbolos da mitologia celta, que ainda persistiam, no continente europeu mas sobretudo nas ilhas britânicas, relacionados com práticas xamânicas e de curandeiros, como o caldeirão, e o facto de os gatos serem criaturas sagradas que faziam a ligação entre este mundo e o mundo espiritual, passaram a estar associadas ao Demónio. Claro, que por vezes, bastava haver uma viúva a viver sozinha, já com uma certa idade, e que ainda por cima falava com os seus gatos, para ser a responsável por todos os males da aldeia. O último julgamento e decapitação de uma bruxa na Europa foi na Suíça em 1782. As execuções formais eram feitas pelos Estados (fogueira, forca, prensagem, afogamento, esquartejamento, e decapitação), mas também havia as execuções informais, como a que houve no México em 1981 em que uma mulher acusada pelo seu marido de ser uma bruxa foi apedrejada até morrer, pelos seus vizinhos. As principais execuções foram feitas em França, Suíça e Alemanha, e sobretudo após a reforma protestante, tanto por católicos como por protestantes. O fenómeno da caça às bruxas é muitíssimo complexo, contudo, sabe-se que bruxas e gatos, sobretudo os negros eram encarados como seres malignos sendo estes considerados parentes daquelas, parentes demoníacos, enviados por Satanás, que assumiam a forma de um gato; entre outras razões, talvez por as bruxas falarem com os seus gatos. O gato passou a estar associado a heresias. Eram mortos com ou sem as suas bruxas. Eram emparedados vivos, crucificados, enforcados, esfolados vivos, atirados das torres de catedrais, ou simplesmente queimados; por vezes nas festas de Verão, onde punham vários gatos vivos em sacos e os atiravam para fogueiras. O número de gatos diminuiu seriamente na Europa, durante a Idade Média, o que fez aumentar o número de roedores, o que por sua vez contribuiu para a disseminação da peste bubónica. Ironicamente, culpou-se os gatos e as bruxas pela peste. Assim é bastante irónico o actual Papa ser um amante de gatos, depois de o Papa Gregório IX, no sec. XIII fundar a Inquisição para combater os hereges, incluindo os gatos, em especial os negros; e de no sec. XV, o Papa Inocêncio VIII através de uma nova bula, ter reafirmado a perseguição das bruxas e dos seus gatos que deveriam ser queimados juntos. Só com o Iluminismo se começou a olhar para os gatos de outra maneira. Porém, ainda hoje o gato negro dá azar…

Ainda assim, sempre houve quem admirasse a graciosidade desse animal, e há inúmeras histórias engraçadas, como a invenção de Isaac Newton, da portinhola, para o seu gato poder sair e entrar quando lhe apetecesse, ou do gato negro de Winston Churchill que estava presente no Conselho de Ministros, na sua cadeira, ao lado de Churchill, durante a II Grande Guerra (e que não deu azar).

Agora que se aproxima o Natal, convém referir que um gato não é um brinquedo, nem uma mercadoria (se bem que já existem gatos geneticamente modificados para não causarem alergia a quem a tem, sinal dos tempos…), nem uma criança (apesar de eles verem o dono como a sua mãe gata de 2 pernas, se viver com ele desde tenra idade), nem um deus, nem um demónio, um gato é um felino que mia, e que humaniza a vida nas actuais sociedades tecnológicas e maquinizadas.

De todos os símbolos mitológicos que se atribuíram a essa criatura fofa, é de realçar a da liberdade e independência atribuído pelos romanos. Quem contribuiu mais para a disseminação do gato na Europa foram os romanos, através das suas legiões. O gato, símbolo de independência e de insubmissão era frequentemente uma mascote das legiões romanas, que acompanhavam as mesmas, também com o intuito de proteger as provisões de alimentos nos acampamentos de roedores. Eram também, por vezes, representadas cabeças de gato nos seus escudos. E a deusa da Liberdade, Libertas, era representada muitas vezes como uma mulher com um gato a seus pés.

Nuno Miguel Cruz
01-12-2008
in Tinta Fresca, jornal de arte, cultura e cidadania